As regras para funcionamento das plataformas de investimento coletivo, também conhecidas comocrowdfunding, irão, novamente, sofrer alterações em 2024. Segundo a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o que se busca com essa atualização é aprimorar as regras, bem como adequá-las à crescente demanda envolvendo a tokenização de ativos.
Para quem não está situado sobre a questão, em 2022, a Instrução CVM 588/17, antiga regulamentação de crowdfunding, passou por uma reforma que culminou na edição da Resolução CVM 88/22, atual diploma que rege os investimentos realizados através de plataformas de investimento participativo.
Com essa alteração, houve o aumento do valor máximo que pode ser captado pela emissora durante a oferta, que passou a ser de R$ 15.000.000,00. Antes, era de apenas R$5.000.000,00.
Além disso, durante a vigência da IN. CVM 588/17, apenas podiam participar de ofertas, via crowdfunding, sociedades que apresentassem receita bruta anual máxima de R$ 10.000.000,00. Agora, esse limite foi majorado para R$ 40.000.000,00.
É preciso destacar, ademais, o aumento do valor anual que pode ser investido por investidor individual, nesses tipos de ofertas. Durante a vigência da IN. CVM 588/17, o investidor se encontrava limitado a realizar o investimento anual de até R$ 10.000,00. Com a vigência da Resol. 88/22, da CVM, esse limite passa a ser de R$ 20.000,00.
Passou-se, também, a permitir a divulgação da oferta por qualquer meio de comunicação, inclusive mídias sociais, condição que antes somente poderia ser realizada através dos sites da emissora e do investidor líder.
No entanto, como nem tudo são flores, passou-se a exigir algumas obrigações adicionais à emissora, como, por exemplo, a contratação de escriturador para realizar a escrituração dos valores mobiliários que estão sendo ofertados. Foi facultado, porém, como alternativa à contratação de agente escriturador, a contratação da própria plataforma para realizar o controle de titularidade dos títulos, desde que esse serviço seja prestado pela plataforma.
Foi exigido, também, que as emissoras que possuam receita bruta anual acima de R$ 30.000.000,00 ou que tenha por objetivo captar mais de R$ 10.000.000,00, realize a auditoria das suas demonstrações financeiras.
Para entender a relação de tais normas com os ativos digitais, é preciso mencionar os Ofícios Circulares SSE nº 4/23 e nº 6/23, da CVM.
Nos últimos anos, sobretudo no ano passado (2023), houveram diversas ofertas públicas de tokens que conferiam ao investidor uma rentabilidade fixa, que variava de acordo com o crédito que estava dando lastro aos referidos criptoativos. É preciso enfatizar que, na época, nenhuma das ofertas foram registradas junto à Autarquia.
Sendo assim, verificou-se uma variedade de recebíveis tokenizados sendo ofertados publicamente. Em algumas operações, os créditos acabavam sendo securitizados pelo emissor ou por um terceiro.
De acordo com os emissores, esses créditos à receber não poderiam ser considerados valores mobiliários pois, nos termos da Lei 6.385/76, não se enquadram no conceito de securities. Além disso, se afirmou que se tratavam de créditos performados, de forma que não haveria a participação de terceiro na aferição do lucro a ser repassado ao investidor, não podendo, por tal razão, se falar em Contratos de Investimentos Coletivos, valor mobiliário previsto no inciso IX, do art. 2º, da Lei nº 6.385/76. Dessa forma, mostrava-se descabida a fiscalização da CVM.
A CVM, então, buscando trazer clareza sobre a questão e apontar o posicionamento da Comissão sobre o assunto, publicou o Ofício Circular de nº 4/23. Nesta manifestação, a Autarquia buscou definir quando que “Tokens de Recebíveis” (TR) ou “Tokens de Renda Fixa” seriam considerados valores mobiliários.
Em síntese, a Autarquia afirmou que, em algumas operações, a oferta pública de TR pode ser equiparável à (I) operação de securitização de que trata a Lei nº 14.430/2022 ou (II) oferta de contrato de investimento coletivo (“CIC”), prevista no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 6.385, de 1976.
Oportunamente, a CVM destacou que reconhece os desafios operacionais envolvendo a oferta de tais ativos dentro do mercado financeiro brasileiro, de modo que, buscando viabilizar tais emissões, foi possível identificar uma certa compatibilidade entre a dinâmica e estrutura desses novos ativos tokenizados e as regras de crowdfunding, previstas na Resol. CVM 88/22.
É claro que, para que isso ocorra, é necessário a sociedade emissora estar sujeita às limitações impostas pelas regras mencionadas, devendo salientar que as normas de crowdfunding foram pensadas e editadas exclusivamente para Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, daí as diversas restrições elencadas entre um artigo e outro.
Destaca-se, a título exemplificativo, a restrição de acesso, eis que somente empresas com um certo faturamento anual podem participar de tais ofertas; restrição de captação; limite anual de aporte a ser realizado pelo investidor; e, o limite anual de ofertas, uma vez que, tendo êxito na captação, a empresa emissora somente poderá realizar nova oferta após 120 dias, contados da data de encerramento da oferta anterior que tenha logrado êxito.
Uma das limitações mais importantes, se não a mais importante, se refere à restrição da negociação dos ativos emitidos através das plataformas de investimento participativo. Praticamente, não existe liquidez nessa modalidade de oferta. É claro que isso vai de encontro à uma das principais propostas dos criptoativos que é tornar ativos ilíquidos ou com baixa liquidez em ativos líquidos. Há, aqui, um desestímulo para a utilização da tokenização ou, até mesmo, um fator que torna esses ativos tokenizados menos atrativos para os investidores.
Em se tratando de títulos securitizados, as empresas emissoras (securitizadoras) devem cumprir com os requisitos previstos na Lei 14.430/22, como elaborar o termo de securitização, eventualmente instituir o regime fiduciário, dentre outros.
Em relação à necessidade de escrituração, a CVM pontuou que “os simples registros em rede DLT não equivalem ao controle de titularidade previsto. Ainda, o token não substitui o valor mobiliário em sua representação cartular ou escritural, tampouco atua com o certificado do mesmo”.
No entanto, naqueles casos em que o controle de titularidade puder ser realizado pela plataforma de crowdfunding, esta poderá se valer dos registros na rede blockchain, desde que seja possível controlar e comprovar a titularidade e a existência de transações.
Essa foi a primeira flexibilização relacionada às emissões tokenizadas, especificamente. Quanto ao depósito, a Comissão também reconheceu que os ativos tokenizados, emitidos através de plataformas de investimentos participativo não precisam ser levados à depósito, conforme exceção do art. 4º, parágrafo único, inciso IV, da Resolução CVM nº 31/2021 c/c as disposições do Capítulo IV da Resolução CVM nº 88/2022, considerando a competência da CVM disposta no art. 19 da Lei nº 14.430/22, que prevalece, em se tratando de matéria específica, sobre art. 23, parágrafo único, inciso I, da Lei nº 14.430/22.
Em relação ao “full and fair disclosure”, a CVM enfatizou a importância da divulgação de informações específicas sobre os ativos tokenizados, em linguagem adequada e inteligível, dada a complexidade da tecnologia que sustenta os criptoativos.
Pouco tempo depois, a Autarquia publicou o Ofício Circular SSE nº 6°/23, como sendo o complemento do Ofício Circular SSE nº 4/23.
Basicamente, o segundo ofício buscou diferenciar quando que os TR seriam enquadrados como frutos de uma operação de securitização e quando seriam interpretados como CICs.
É claro que essa distinção importa, eis que, por exemplo, sendo uma operação de securitização, é preciso que a sociedade emissora seja estruturada como uma securitizadora e isso envolve, obrigatoriamente, a constituição de uma Sociedade por Ações (S.A) com objeto social específico, a teor do que contém o art. 18, da Lei 14.430/22.
Um fator que merece o devido destaque é o fato de a CVM apontar, expressamente, naquela ocasião, que as plataformas de investimento participativo poderiam ser securitizadoras e, portanto, a própria emissora dos ativos securitizados tokenizados.
Dessa forma, a securitizadora não precisaria contratar uma plataforma de crowdfunding e, nem mesmo, constituir uma nova entidade para atuar como plataforma, alternativas que, com certeza, aumentariam demasiadamente os custos operacionais.
Sobre a última alternativa, é preciso salientar que, nos termos do art. 5º, § 1º, da Resolução CVM nº 88/22, os valores aportados pelos investidores não podem transitar em contas correntes mantidas em nome dos sócios e pessoas ligadas à plataforma e nem mesmo da própria plataforma. Essa vedação, via de regra, impede que as plataformas de crowdfunding ou os seus sócios constituam uma companhia securitizadora para emitir os valores mobiliários de securitização ofertados nesse ambiente.
Todavia, tal impedimento somente se aplica para os casos envolvendo emissões de ativos securitizados, quando não for constituído o patrimônio separado pela securitizadora. Algumas interpretações, também, precisaram ser feitas pela autarquia para enquadrar as normas da Resol. CVM 88/22 às securitizadoras.
A primeira interpretação que foi firmada se refere ao patrimônio separado. Como se sabe, o regime fiduciário possibilita a segregação dos ativos e passivos sobre os quais incidem os demais ativos e passivos da companhia securitizadora. Logo, consiste em um instituto jurídico essencial para viabilizar a realização de múltiplas operações de securitização por uma mesma companhia securitizadora, com segregação de risco de crédito entre elas. Dessa forma, no regime fiduciário, a securitizadora cria um patrimônio separado do seu próprio patrimônio, buscando alcançar essa segregação.
A CVM afirmou que o patrimônio separado, especificamente, pode ser considerado emissor para todos os efeitos. Assim, cada patrimônio separado (emissor) que for criado pela securitizadora para realizar a emissão de ativos securitizados, deverá observar as limitações previstas na Resol. CVM 88/22, tais como, limite de faturamento; limite de captação; limite de somatório de captação e o intervalo de tempo entre as ofertas. A interpretação utilizada foi a mesma que já vinha sendo aplicada para os casos envolvendo fundos de investimentos, nos termos dos art. 102, § 1º, I, da Instrução CVM nº 555/14 e art. 44, § 1º, I, do Anexo Normativo I da Resolução CVM nº 175/22.
Considerando o patrimônio separado como emissor para todos os efeitos, entende-se que a vedação descrita anteriormente, prevista no art. 5º, § 1º, da Resol. CVM 88/22, não se aplica, uma vez que os recursos transitarão pela conta corrente submetida ao mesmo regime fiduciário do lastro, ou seja, pelo patrimônio separado previsto na Lei 14.430, não se confundindo, assim, com o patrimônio da securitizadora, da plataforma de crowdfunding ou de seus sócios.
Foi destacado, também, que o limite anual de investimento que pode ser realizado pelo investidor, no montante de R$ 20.000,00, pode ser flexibilizado. Essa flexibilização pode ocorrer quando retornada parte ou a totalidade desse valor investido dentro do ano calendário, ocasião em que o investidor poderá reinvestir, no mesmo ano, a parcela correspondente ao principal do valor retornado.
Como pôde ser visto, a CVM buscou flexibilizar algumas imposições, restrições e obrigações previstas na Resol. CVM 88/22, no intuito de adequá-las à realidade desses novos ativos tokenizados. No entanto, a perfeita aplicabilidade de tais normas à dinâmica esperada destes ativos ainda encontra diversas barreiras para ser alcançada.
Deve ser pontuado, aqui, o prestígio que o presente autor tem pela postura da Comissão em tentar encontrar alternativas para regularizar as ofertas que já vinham sendo realizadas.
No entanto, acredito que as normas de crowdfunding foram editadas se pensando em um contexto diverso, qual seja, o acesso de pequenas empresas ao mercado de capitais brasileiro.
Dessa forma, considero que essa sugestão serviu para atuar como um “projeto piloto”, visando observar como o mercado se comporta nesse novo contexto, mitigando, demasiadamente, os eventuais riscos, através das diversas restrições, obrigações, e limitações previstas na Resol. CVM 88/22.
Todavia, observando a possibilidade de aprimorar essas regras para ultrapassar algumas das barreiras existentes, o diretor da CVM, o Sr. Daniel Maeda, declarou que, em 2024, as normas de crowdfunding sofrerão novas alterações.
Nesse ponto, é preciso destacar que os ofícios circulares não são vinculantes, servindo, tão somente, para consolidar um determinado entendimento, por isso a alteração regulamentar se mostra importante para dar um respaldo maior em relação às mudanças propostas pela Autarquia, além de evitar que empresas realizem ofertas em desacordo com o entendimento firmado, na ocasião da edição dos ofícios.
Inclusive, no próprio portal da CVM[1], a Autarquia deixa claro que a reforma da Resol. CVM 88/22 constitui um dos temas que estão entre as prioridades para realização de consulta pública junto ao Mercado e à sociedade.
Daniel, fez questão de destacar que o objetivo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) com a reforma é “promover aprimoramentos” para atender à crescente demanda pela oferta de tokenização de recebíveis. Foi possível verificar esse aumento, a partir do levantamento do número de tokenizadoras que submeteram, junto à CVM, o pedido de registro como plataformas de crowdfunding.
Maeda destacou, também, que uma distribuição direta de tokens para o varejo de forma mais ampla e sem restrições representa um passo ambicioso. Contudo, o diretor da CVM enfatizou que nada impede de se pensar em algumas flexibilizações que minimizem as restrições previstas na Resol. CVM 88/22.
Outra questão que está sendo debatida pela Autarquia é a oferta de tokens por meio de fundos de investimentos. Para quem não sabe, as normas de fundos de investimentos sofreram alterações, tendo sido consolidadas na Resol. CVM 175/22, que, por sua vez, teve o seu texto alterado pelas Resoluções CVM nº 181/23, 184/23 e 187/23. Neste diploma, foram trazidas algumas normas esclarecendo sobre a possibilidade de a carteira do fundo ser composta por ativos digitais, no entanto as normas não encerraram a discussão sobre a possibilidade de fundos de investimentos realizarem a emissão de criptoativos.
Daniel pontuou, ademais, a possibilidade da regulação de exchanges, que está sendo desenvolvida pelo Banco Central, alavancar uma própria regulamentação da CVM também para ambientes de valores mobiliários.
Inclusive, particularmente, é o que se espera dos próximos meses. Com isso, verifica-se que as normas de crowdfunding poderão se tornar mais maleáveis para ofertantes que desejem realizar emissões de recebíveis tokenizados, quando esses recebíveis representarem operações de securitização ou CICs. Isso pode contribuir, ainda mais, para o aumento da demanda por esse tipo de oferta. No entanto, percebemos que, por hora, ainda haverá restrições que impedirão valores mobiliários de serem emitidos livremente para investidores de varejo, tal como ocorre no mercado tradicional.
Destaca-se, por fim, que, para aquelas empresas que não se enquadram nos requisitos previstos na Resol. CVM 88 e que desejam ofertar publicamente valores mobiliários em solo nacional, é possível buscar regularizar a oferta através do pedido de dispensa de registro, previsto no art. 43, da Resol. CVM 160. Deve ser advertido, todavia, que, ao contrário da oferta realizada através de plataformas de investimento participativo, cuja dispensa de registro é automática, na hipótese prevista no art. 43, da Resol. CVM 160, a decisão da Autarquia em acolher ou não o pedido formulado pela sociedade emissora é discricionária. Referências
[1] https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/2023/normatizacao-de-fiagro-portabilidade-eassembleias-de-acionistas-integram-agenda-regulatoria-2024-da-cvm.
*Jorge Barros – advogado especializado em direito empresarial, na estruturação de negócios Blockchain e na proteção de investidores contra Golpes de Pirâmides Financeiras.
Instagram: @jorgebarrosadvogado Email:Jorgelbarrosadv@gmail.com Linkedin:https://www.linkedin.com/in/jorge-barros-24a914208/
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