A CVM proferiu decisão recente em consulta realizada à autarquia a respeito da qualificação jurídica do token DYN. Trata-se do precedente mais detalhado até o momento sobre o exame dos requisitos do art. 2º, IX, da Lei nº 6.385/1976 por um ativo virtual pelo regulador brasileiro, que guiará os agentes de mercado no tocante à necessidade ou não de registro de emissor ou de oferta pública perante a CVM antes de ofertar um token.
Após um voto minucioso do Presidente João Pedro Nascimento no sentido de o referido token ser um valor mobiliário, acompanhando o entendimento da área técnica, a Diretora Marina Coppola divergiu e foi acompanhada pelos Diretores Otto Lobo e João Accioly, restando vencido também o Diretor Daniel Maeda: DYN não foi considerado um valor mobiliário.
Apesar dos excelentes e meticulosos votos apresentados, gostaria de realçar alguns pontos de atenção, extrapolando a discussão intrincada sobre o Howey Test, ou melhor “Subsection Nine Test”, como sugerido pelo Diretor João Accioly, em alusão à necessidade de maior aderência à literalidade da lei brasileiro em detrimento do transplante de precedentes norte-americanos.
Essência da discussão
O token DYN foi ofertado pela Dynasty, empresa constituída na Suíça, com o propósito de servir como meio eletrônico de pagamento. Para tanto, a fim de mitigar a volatilidade inerente a criptoativos, a empresa propôs um modelo de recompra de tokens (Buyback & Burn), de modo a gerenciar a sua escassez. O recurso utilizado nesse mecanismo seria proveniente do resultado dos investimentos da empresa em projetos imobiliários.
Deixo a quem lê esse texto uma questão para reflexão: com base nestas informações do parágrafo anterior, seria necessário que a Dynasty pedisse autorização ao Banco Central para atuar como prestadora de serviços de ativos virtuais no Brasil, nos termos da Lei nº 14.478/2022? Se sim ou não, por quê?
A Dynasty apresentou consulta à CVM a fim de mitigar a incerteza sobre a necessidade de registro perante a autarquia, na hipótese de o token DYN ser um valor mobiliário.
Podemos parafrasear o entendimento da Superintendência de Securitização e Agronegócio (SSE) da seguinte maneira: a empresa capta recursos por meio dos tokens DYN, investe em projetos que geram receita e empreendem esforços para evitar sua depreciação e volatilidade, além de, por meio de investimentos em marketing e tecnologia, viabilizarem a potencial valorização do criptoativo em mercado secundário.
Desse modo, a atuação da DYN e o modelo de negócio em questão gerariam expectativa de benefício econômico para o titular do token, decorrente do esforço da empresa emissora. Sendo incontroversa a presença dos demais requisitos do Howey test – investimento de natureza coletiva formalizado por título ou contrato – e preenchidos os de benefício econômico e esforço de terceiro, o token DYN seria, portanto, valor mobiliário.
Irresignada, a empresa apresentou recurso ao Colegiado da CVM, reforçando o argumento de que o mecanismo de recompra não representaria uma forma de remuneração aos investidores, porque seria exercido a exclusivo critério da empresa em situações especiais para estabilizar as cotações e não para inflá-las artificialmente.
Assim, a existência de direito de participação, remuneração ou parceria exigida pela lei brasileira tornou-se uma discussão sobre frear um carro (amenizar perdas, como proposto no mecanismo de estabilização do DYN) ou acelerá-lo (impulsionar ganhos, atuando para valorizar o ativo) resultarem no mesmo efeito (jurídico, de qualificar como valor mobiliário).
Para não tornar esse texto ainda mais extenso, tratarei exclusivamente dos votos vencedores, eventualmente cotejando-os com argumentos dos votos do Presidente João Pedro Nascimento e do Diretor Daniel Maeda.
DYN não é valor mobiliário: Diretora Marina Coppola
O argumento central da Diretora Marina Coppola foi o de que a expectativa de “manutenção do poder de compra” do DYN não consubstancia uma atuação do promotor para sua valorização como ativo financeiro, com a consequente geração de uma expectativa de ganho futuro. O mecanismo de estabilização de preços se assemelharia guarda à atuação de autoridades monetárias e as funções e objetivos da atividade de preservação do valor da moeda e de uma promessa de remuneração são diferentes.
Ainda, para a Diretora Marina Coppola, a adoção de medidas com o objetivo de gerar liquidez, “embora criem condições para uma negociação com terceiros com potenciais ganhos, não são aptas a gerar um benefício intrínseco ao ativo, decorrente de um ‘direito de participação, parceria ou remuneração’, como exige a lei.
DYN não é valor mobiliário: Diretores Otto Lobo e João Accioly
Por sua vez, o Diretor Otto Lobo acrescentou dois argumentos importantes à discussão e duas ressalvas.
Primeiro, não há investimento porque não se constata relação direta entre o valor dos DYNs e o valor dos imóveis adquiridos pela Dynasty através do mecanismo de Buyback & Burn. Os valores dos imóveis serviriam apenas de lastro para o DYN enquanto meio de pagamento;
Segundo, eventual valorização dos D¥Ns está sujeita à oferta e demanda, sem representar qualquer remuneração aos titulares dos DYNs e o mecanismo de Buyback & Burn foi criado para mitigar efeitos deletérios da inflação e não propriamente gerar ganhos sobre o seu valor.
Terceiro, não estão definidos os critérios utilizados pela Dynasty para regular a citada estabilidade desses tokens.
Quarto, não está definido se os recursos obtidos pela Dynasty, mediante a aquisição de ativos imobiliários, serão empregados tão somente para manter a estabilização do valor dos D¥Ns; ou se tais recursos serão implementados para aumentar o valor desses tokens, não havendo indícios de que isso está sendo ou seria feito, apesar da retórica da publicidade veiculada pela Dynasty
As duas últimas ressalvas representam um desafio, pois, a depender da efetiva concretização do mecanismo de Buyback & Burn, sua utilização em termos distintos do enunciado pela Dynasty poderia desnaturar toda a argumentação dos votos vencedores.
Por fim, além de corroborar a conclusão de que a manutenção do poder de compra dos tokens não representa remuneração, o ponto central do voto do Diretor João Accioly foi a sua posição no sentido de que o ativo deve prever um direito de recebimento de contraprestação e os investidores não teriam qualquer direito contra o emissor, senão o da propriedade do título. A expectativa de um direito seria, assim, condição necessária, mas não suficiente para a caracterização do token como valor mobiliário, pois “o contrato de investimento que atrai a competência da CVM é aquele que atribui à parte (ou adquirente) o direito de parceria, participação ou remuneração”.
A motivação do investidor é irrelevante?
Há um passo importante na fundamentação dos votos vencedores, no tocante à verificação da existência de benefício econômico. Para a Diretora Marina Coppola, a motivação do investidor não integra, nem por equiparação os requisitos previstos no art. 2º, IX, da Lei nº 6.385/1976, uma vez que o direito brasileiro requer, de forma diversa, a existência de direito de participação, parceria ou remuneração, resultando em interpretações menos extensivas da expectativa de benefício econômico exigida no Howey test nos tribunais norte-americanos. Assim:
Nesta jurisdição, o requisito de “expectativa de benefício econômico” não precisa estar materializado em um “direito de participação, remuneração ou parceria” intrínseco ao título ou contrato ofertado.
E, ainda:
A aquisição de título ou contrato com a perspectiva de obtenção de benefício econômico a partir de fatores exógenos, tais como cenário econômico nacional ou internacional, lei de oferta e demanda, e, portanto, alheios ao empreendimento ou ao controle do empreendedor (ou de terceiro), não é suficiente para a atração do regime mobiliário.
Adicionalmente, o Diretor ressalvou que há uma diferença entre expectativa e direito:
Entendo que isso também pode ser percebido por uma ótica adicional que foca nas ligações entre direitos e expectativas: a consciência de ter um direito gera em seu titular a expectativa das modificações econômicas decorrentes do cumprimento das obrigações correspondentes. Mas a recíproca não é verdadeira: ter expectativa não pressupõe ter direito.
A meu ver, as conclusões reproduzidas acima merecem maiores debates por parte do meio acadêmico e da própria CVM por duas razões.
Em primeiro lugar, a expectativa de benefício econômico não é sinônimo de analisar a motivação do investidor, mas sim uma consequência do princípio da essência sobre a forma. O seguinte entendimento do Diretor João Accioly parece corroborar essa visão:
não creio que seja só porque o Howey Test fala em expectativa de lucro que esse traço aparece como fator caracterizador nas discussões brasileiras, mas também o fato de que todo valor mobiliário tenha, na prática, essa característica faz com que o conceito com que cada intérprete opera acabe por incluí-la como o determinante central.
A lei brasileira se vale de conceitos jurídicos indeterminados com certa sobreposição de significados – participação, remuneração e parceria – para permitir que, no caso concreto, seja verificado se, independente do que é expressamente declarado pelo emissor dos títulos ou contratos, é possível verificar a existência desse requisito.
No meu entendimento, a única forma de verificar a existência do direito, para além do que é declarado pelo emissor, é colocar-se na posição do investidor e se perguntar: “por que eu investiria nisso?”. A resposta a essa pergunta é determinante para verificar se é ofertado um direito de remuneração, participação ou parceria, que não se traduz apenas em pagamento direto, mas também em benefícios econômicos em cuja geração a atuação do empreendedor seja preponderante.
Portanto, analisar a motivação do investidor e a expectativa de benefício econômico não são exigências da lei, mas necessidades práticas de seu intérprete, as quais, uma vez afastadas, resultam no recurso à mera literalidade do título ou contrato, inviabilizando a concretização o princípio da essência sobre a forma.
Em segundo lugar, é preciso ter cautela ao considerar que os preços de um token flutuam ao sabor da lei da oferta e demanda. Assim, é preciso debater se a valorização em mercado secundário é ou não um fator exógeno. Na visão da área técnica da CVM, a atuação do emissor para assegurar o poder de compra do token e sua aceitação como meio de pagamento é determinante para a própria continuidade do projeto. Assim, há forte nexo causal entre a atividade da empresa emissora e as cotações em mercado, não sendo possível atribuí-las a fatores alheios ao controle do empreendedor.
Pensar de forma diversa resultaria, por exemplo, em afastar a natureza de valor mobiliário de ações de companhias que nunca pagam dividendos, tais como Amazon, Alphabet, Meta e Tesla (seriam valores mobiliários apenas por serem ações, mas falhariam no teste modificado da lei brasileira proposto pela Diretora Marina Coppola).
Pelo exposto, o critério de verificação de expectativa de benefício econômico me parece totalmente compatível com a lei brasileira e uma tentativa de interpretação literal dos termos participação, parceria e remuneração destoa da tendência prevalecente no Colegiado da CVM de privilegiar a essência econômica da operação sobre a forma, fugindo do hiato entre textos e fatos destacado pelo Diretor Daniel Maeda.
Qualificação como valor mobiliário gera ineficiências?
Inicialmente, convém destacar a relevância do objetivo de reduzir ineficiências enunciado no voto do Diretor João Accioly, de modo que qualificar um token como valor mobiliário pode trazer um peso excessivo aos agentes de mercado, com mais consequências negativas do que benefícios. Por essa razão, iniciativas como a modernização da regulação das plataformas de crowdfunding e o sandbox regulatório são preferíveis à imposição do modelo tradicional de registro de emissor e oferta pública a projetos inovadores.
A leitura dos votos vencidos parece autorizar um cenário no qual certo token só será valor mobiliário se expressamente oferecer dividendos ou juros, ainda que seja verificável a expectativa de algum benefício econômico (tal como a manutenção do poder de compra) e ou valorização em mercado secundário, tal como considerado a SEC nos Estados Unidos. Naquela país, o regulador adota uma postura maximalista, praticamente inserindo todos os tokens existentes no âmbito de sua competência. Talvez seja exatamente isso que a CVM queira evitar.
Se for esse o caso, a resposta do regulador não pode demorar anos, por ser incompatível com o ritmo do mercado. Ainda, a complexidade da discussão também representa um obstáculo relevante e a própria Diretora Marina Coppola reconhece a possibilidade de discussões adicionais:
Compreendo as tensões interpretativas que esta ação gera, e não me surpreenderia se, no futuro, outros instrumentos, dotados de configurações ligeiramente diferentes, venham testar os limites do requisito de “expectativa de benefício econômico”, com resultados diversos.
Pode não ser possível afastar a necessidade da discussão sobre a qualificação de um token como valor mobiliário, mas a busca por eficiência econômica e a diminuição de custos de observância não pode desnaturar o raciocínio consolidado da CVM sobre a interpretação do art. 2º, IX, da Lei nº 6.385/1976. Negar a natureza de valor mobiliário prejudicará a interpretação deste dispositivo para futuros modelos de negócios e inviabilizará a aproximação entre o que é apresentado nos whitepapers dos tokens e a realidade.
Na prática, os tokens são emitidos para financiar projetos e os investidores os adquirem para auferir lucros. Infelizmente, a insegurança jurídica leva à criação de narrativas heterodoxas, quando o caminho mais simples seria reconhecer que se trata de um valor mobiliário e tentar mitigar o peso excessivo dessa qualificação.
Em vez de afastar a competência da CVM, um caminho mais eficiente pode ser a intensificação das flexibilizações no caso de ofertas de tokens, especialmente pela reforma da Resolução CVM nº 88/2022, cujas restrições limitam o mercado primário e, sobretudo, o mercado secundário de tokens.
O aumento da segurança jurídica pode ser obtido com menos discussões jurídicas que resultam no afastamento da competência da CVM e mais mecanismos para recepcionar a inovação pela via comissiva (e não omissiva), modernizando o arcabouço regulatório vigente.
*Isac Costa é advogado, professor do Insper e da LegalBlocks. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.
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