Cripto e a (falta de) educação financeira

Cripto e a (falta de) educação financeira

Quando você compra um criptoativo, o que exatamente você adquire? É bastante provável que a maioria dos investidores desse mercado não saiba responder a essa questão adequadamente. Assim como o bitcoin, tokens como ETH, BNB, SOL, DOGE, ADA e TRX não representam um direito de crédito nem um direito de participação nos resultados de uma empresa. Desafiando qualquer modelo tradicional de valuation, a expectativa de benefício econômico decorre exclusivamente da percepção social sobre a viabilidade e a adoção em massa desses tokens para alguma finalidade.

Apesar disso, o número de investidores no mercado cripto continua crescendo e, no Brasil, conforme dados divulgados pela Receita Federal até meados de 2023, cerca de 4 milhões de pessoas físicas negociavam esses ativos. É possível que boa parte dessas pessoas, além de desconhecer as características e riscos desse mercado, sequer tenha experiência prévia com ativos de renda varável.

Como ensina Damodaran, valuation é a arte de conectar narrativas a números. E a narrativa em torno dos tokens se vale de elementos distintos dos que encontramos em demonstrações financeiras e modelos econômicos tradicionais. Dentre outras teses, o investimento em cripto se justifica pela busca por diversificação (diante de uma alegada ausência de correlação com ativos tradicionais), expectativa de maior independência de intermediários financeiros tradicionais e da intervenção estatal na economia e uma redução de custos e potencial maior incremento na segurança em transações financeiras.

Mas será que é realmente esta a motivação dos investidores desse mercado? Uma pesquisa recentemente divulgada pela exchange Binance com cerca de 10 mil usuários de Argentina, Brasil, Colômbia e México trouxe dados interessantes para essa discussão.

Conforme a pesquisa, cerca de metade dos usuários busca retornos de longo prazo ao comprar criptoativos, o que pode causar certa perplexidade, diante do grau de maturidade das tecnologias envolvidas, que ainda sequer começaram a endereçar adequadamente o problema da escalabilidade, isto é, o aumento da capacidade de processar transações em uma infraestrutura efetivamente descentralizada. Por ora, os ganhos de escala só podem ser observados em arranjos que tendem à centralização, desnaturando a proposta de desintermediação e, em última análise, governança descentralizada de dados.

Não há dados históricos suficientes para qualquer projeção de médio e longo prazo e, pelo contrário, a análise da dinâmica de tecnologias emergentes sugere que muitas rupturas de paradigma podem fazer com que os tokens de hoje se tornem obsoletos com alguma facilidade. Os projetos ainda sofrem as dores naturais dos primeiros estágios de desenvolvimento e, talvez, a perspectiva de longo prazo pode decorrer da expectativa de que os tokens se tornem relíquias valiosas ou, então, é simplesmente uma questão de fé.

A pesquisa também revela que, dentre os motivos mais votados pelos usuários, encontramos perspectivas de altos retornos (20,3%), liberdade financeira (15,2%) e proteção do dinheiro (13,3%). Ou seja, a volatilidade nesse mercado acaba sendo o principal fator que atrai investidores, em busca do próximo “bilhete de loteria”. E a ideia de que, apesar dessa volatilidade, é possível “proteger” investimentos, ignorando a probabilidade de grandes perdas na busca pelo próximo criptoativo que “pode subir até 500%”, como anunciam as manchetes com iscas para leitores ávidos por “oportunidades”.

A busca por inovação (12,5%), diversificação de carteira (10,9%) e segurança e privacidade (10,3%) acabam figurando como coadjuvantes, segundo a pesquisa, embora sejam as protagonistas na construção da narrativa acerca do setor. Igualmente, outras funções destacadas pelos holofotes – transações diretas entre pessoas para pagar despesas diárias (4,9%) e remessas de recursos (3,4%) – ainda são, na prática, pouco relevantes.

Pesquisas como a realizada pela Binance nos ajudam a confirmar que, se de um lado existem projetos inovadores que buscam modernizar as infraestruturas de mercado financeiro utilizado tecnologias descentralizadas, de outro, o maior barulho em torno do mercado cripto ainda decorre de certa “mania” em torno de tokens-tulipas cuja utilidade e valor ainda são objeto de controvérsia para os mais céticos.

Assim, uma conclusão possível é a de que o maior (e talvez único) combustível das altas e retomadas dos preços é a fé de que o setor irá decolar, abstraindo o que ocorre de fato nos projetos e nos resultados obtidos.

A aprovação de produtos regulados como os ETFs de bitcoin e Ethereum sinaliza que mais dinheiro (tradicional) ingressará nesse mercado, fortalecendo as expectativas dos otimistas.

Vale a ressalva de que, se pensarmos nos motivos que levam investidores de varejo a comprarem ações, por exemplo, talvez o mercado tradicional não seja tão diferente do mercado cripto. Afinal, boa parte dos investidores não compreende ou não acompanha as atividades desempenhadas pelas empresas, não é capaz de coletar, validar, analisar e utilizar as informações divulgadas ao mercado (exigidas pela regulação) e acabam, em última análise, embarcando em uma jornada de fé.

Penso que a maior lição que um observador do mercado cripto nos últimos anos pode inferir é a de que, na ausência de educação financeira, qualquer ativo é um bilhete de loteria e o motivo determinante para a decisão de investimento é o conforto trazido pela esperança dos retornos (graças à dopamina) e, nesse caso, quanto maior a volatilidade, a ilusão do maior “prêmio” ofusca qualquer aversão a risco. Tal mentalidade torna esse tipo de investidor suscetível a predadores da esperança alheia, muitos deles hábeis líderes carismáticos, genuínas más influências sobre as quais nossos pais nos advertiam.

Seja no mercado cripto ou no mercado tradicional, quando não se observa com o erro alheio, o aprendizado pela dor pode ser fatal.

 


*Isac Costa é advogado, professor do Insper e da LegalBlocks. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.

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