Screenshot 2023-10-18 203530

A SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT Nº 218/2023 DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL E AS ATIVIDADES EMPRESARIAIS ENVOLVENDO NFTs UTILITÁRIOS: DA INCONSTITUCIONALIDADE, ILEGALIDADE E IMPRECISÃO TÉCNICA DA EXIGÊNCIA DE OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS ACESSÓRIAS ÀS RESPECTIVAS PLATAFORMAS INTERMEDIADORAS, CUSTODIANTES E EMISSORAS

Adriano da Silva Felix

INTRODUÇÃO

Recentemente, a Receita Federal do Brasil divulgou as Soluções de Consulta COSIT nº 217 e 218, ambas de 21 de setembro de 2023, publicadas no Diário Oficial da União de 29/9/2023, que tratam de obrigações tributárias acessórias de prestação de informações, no que tange às pessoas jurídicas que oferecem serviços envolvendo Tokens Não Fungíveis.

Ambos os Consulentes, formuladores das consultas geradoras das citadas soluções, são pessoas jurídicas de direito privado que buscaram opinião oficial quanto ao dever ou não de prestar informações tributárias relativas às suas operações realizadas com NFTs, nos termos exigidos na Instrução Normativa nº 1.888/2019, da Receita Federal do Brasil.

Contudo, a Receita Federal do Brasil apenas afastou a referida obrigação tributária acessória para pessoas jurídicas cujas plataformas digitais prestam o serviço de intermediação de operações com NFTs representativos de bens imóveis (Solução de Consulta COSIT 217/2023), mantendo-se o dever de prestar informações tributárias para pessoas jurídicas cujas plataformas digitais prestam o serviço de emissão ou intermediação de transações de utility tokens em geral (Solução de Consulta COSIT 218/2023).

Pois bem. Inicialmente, ressalta-se que não serão analisadas as questões referentes à viabilidade legal da tokenização imobiliária, pois este estudo se delimita ao exame crítico quanto às definições de “criptoativo”, “exchange” e “NFT” utilizadas e aplicadas pela Receita Federal do Brasil, tanto em sua IN nº 1.888/2019, alterada pela IN RFB nº 1.899/2019, quanto nas duas Soluções de Consulta acima citadas, tema extremamente relevante até mesmo para pessoas jurídicas que pretendem simplesmente acatar a Solução de Consulta COSIT nº 218/2023 sem maiores discussões.

A mencionada relevância advém de duas dúvidas, encaminhadas a este autor após a divulgação das Soluções de Consulta em exame, quais sejam: a validade ou não da exigência tributária concernente aos utility tokens e a possibilidade ou não de sanção tributária pecuniária (multas), por descumprimento de obrigação acessória, no que tange aos anos anteriores à Solução de Consulta nº 218/2019, para plataformas de NFTs utilitários que não prestaram informações à Receita Federal.

Desse modo, o estudo sobre as definições e características de “criptoativos” e “NFTs” não são meras elucubrações filosóficas, pois são essenciais à verificabilidade das subsunções legais de diversos negócios Web3 a deveres jurídicos previstos não só na legislação tributária brasileira, mas também na legislação pertinente ao Sistema Financeiro Nacional brasileiro (v.g. regulação da Comissão de Valores Mobiliários e do Banco Central do Brasil), além, por óbvio, nos ordenamentos jurídicos estrangeiros e internacionais, conforme diversos artigos da Plataforma CriptoJur já trataram.

1. DA SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT 217/2023 DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL

Para melhor esclarecer os entendimentos da Coordenação-Geral de Tributação da Receita Federal (COSIT), cita-se abaixo a ementa da referida Solução de Consulta:

SOLUÇÃO DE CONSULTA 217-COSIT-21 DE SETEMBRO DE 2023

Assunto: Obrigações Acessórias

CRIPTOATIVOS. NFT (NON FUNGIBLE TOKEN). PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES À RFB.

A pessoa jurídica que oferece serviços referentes a operações com non fungible token (NFT), representativo de um imóvel em particular, não está obrigada a prestar as informações relativas a operações com tal NFT, conforme a Instrução Normativa RFB nº 1.888, de 3 de maio de 2019, pelo fato dele não se enquadrar no conceito de criptoativo previsto na referida Instrução Normativa.

DIMOB. EMPRESA QUE INTERMEDEIA A ALIENAÇÃO DE NFT. CONFIRMAÇÃO DE PROPRIEDADE DE NFT PARA FINS DE LOCAÇÃO.

A pessoa jurídica que intermedeia a alienação de NFT, representativo de um imóvel físico em particular, ou que apenas confirma a titularidade de tal NFT, para fins de locação do imóvel que ele representa, e registra essas transações, não está obrigada a apresentar a Declaração de Informações sobre Atividades Imobiliárias (Dimob) por conta dessas atividades.

Dispositivos Legais: Lei no 9.779, de 19 de janeiro de 1999, art. 16; Instrução Normativa RFB nº 1.115, de 28 de dezembro de 2010, art. 1º, inciso II; Instrução Normativa RFB nº 1.888, de 3 de maio de 2019, art. 5º, inciso I.1 [Grifos do original e acrescentados por este autor]

Em síntese, a Receita Federal do Brasil fundamentou seu entendimento com fulcro na ausência de característica essencial dos “criptoativos”, prevista no inciso I, do art. 5º da IN RFB nº 1.888/2019, que faltaria nos NFTs, in verbis:

Art. 5º Para fins do disposto nesta Instrução Normativa, considera-se:

I – criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal; e.2 [Grifado]

Para explicar o sentido de “unidade de conta”, a Receita Federal esclareceu, no texto integral da Solução de Consulta nº 217/2023, que:

15. “Unidade de conta” é uma das típicas funções da moeda, que permite atribuir preços a bens e serviços. Tal característica afasta os ativos virtuais de caráter unitário e infungíveis. Ao se estabelecer que o criptoativo (“para fins do disposto nesta Instrução Normativa”) constitui “uma representação digital de valor em sua própria unidade de conta”, está-se restringindo a sua definição ao que, normalmente, se denomina de moeda virtual (ou criptomoeda). Aliás, são essas criptomoedas que têm, em princípio, as negociações mais frequentes, que se pretendem identificar com a referida Instrução Normativa.[Grifado]

Pois bem. A função de “unidade de conta” das criptomoedas ocorre tanto para os tokens utilizados para o pagamento de taxas de uma Blockchain específica (v.g. Bitcoin, na Blockchain do Bitcoin; e Ether, na Blockchain da Ethereum), quanto para os tokens denominados de stablecoins (v.g. a USDC e a USDT).

Por outro lado, quanto aos tokens não fungíveis (NFTs), o entendimento da Receita Federal, no texto acima citado, se coaduna com a realidade técnica do ecossistema Web3, uma vez que, por serem infungíveis, não são mutuamente intercambiáveis em unidade de conta tal como são as criptomoedas, stablecoins e moedas fiduciárias.

Para auxiliar esta compreensão, citam-se os seguintes trechos da Solução de Consulta COSIT 217/2023:

16. No caso da consulente, o ativo virtual a que ela se refere, representativo de um imóvel físico determinado, tem um caráter unitário e infungível. Trata-se de um non fungible token (NFT) representativo de um imóvel único. A consulente, pelas informações por ela prestadas, intermedeia as operações de compra e venda desse NFT e confirma, nas operações de locação do imóvel que o NFT representa, aquilo que chamou de “propriedade digital” (tem, ao que parece, atividades de intermediação na compra e venda e de custódia dos referidos ativos virtuais).

17. Assim, pode-se inferir da definição de criptoativo da Instrução Normativa RFB nº 1.888, de 2019, que o NFT em questão não se enquadra no conceito de criptoativo cujas operações devem ser declaradas à RFB, na forma dessa Instrução Normativa.

18. Dessa forma, a pessoa jurídica que oferece serviços referentes a operações com NFT, representativo de um imóvel em particular, não está obrigada a prestar as informações relativas a operações com esse NFT, conforme a Instrução Normativa RFB nº 1.888, de 2019, pelo fato dele não se enquadrar no conceito de criptoativo previsto na referida Instrução Normativa. [Grifado]

Assim, verifica-se que o fundamento do entendimento da Receita Federal do Brasil, para afastar a incidência da obrigação tributária de encaminhamento de informações, vincula-se aos atributos de infungibilidade e ausência de unidade de conta, típicos dos NFTs.

Denota-se, ainda, que a Receita Federal Brasileira entende que a plataforma digital que intermedeia ou custodia NFTs representativos de imóveis, por consequência, não se enquadraria no conceito de Exchange.

Pois bem. Resumidamente, no que tange aos seus aspectos técnicos, os Tokens Não Fungíveis, no inglês, Non-Fungible Tokens ou NTFs, sigla mais comumente usada, são tokens digitais criptográficos, criados por contratos inteligentes (smart contracts) e registrados e verificáveis em uma blockchain e que, por disporem de uma identificação exclusiva e imutável, geralmente atrelados à informações e demais metadados, representam um ativo digital ou até real3 e, além disso, este autor acrescenta que: podem servir como prova digital representativa de negócios jurídicos envolvendo a titularidade do direito à prestação de serviços, digitais ou reais (v.g. acesso a cursos, plataformas digitais, inclusive metaversos; acesso a clubes exclusivos, comunidades, eventos, conferências e shows; verificação de perfis em redes sociais; registros de domínios; downloads de certas quantidades de artigos científicos, etc), e de prova digital de negócios jurídicos que conferem titularidade concernente a direitos subjetivos especiais (v.g. tokens de governança que conferem direito a voto).

Destaca-se que, quanto aos NFTs que representam negócios jurídicos envolvendo prestação de serviços ou direitos subjetivos especiais, as comunidades do ecossistema cripto têm usado com frequência a nomenclatura de NFTs Utilitários (ou ainda, no inglês: IRL – In Real Life; Utility Tokens ou Utility-based NFTs).4

Nesse sentido, também agiu por bem o legislador infraconstitucional ao excepcionar, do conceito de ativos virtuais, os NFTs utilitários, nos termos do artigo 3º, III, da Lei nº 14.478/2022:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, não incluídos:

I – moeda nacional e moedas estrangeiras;
II – moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013;
III – instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e
IV – representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros.
Parágrafo único. Competirá a órgão ou entidade da Administração Pública federal definido em ato do Poder Executivo estabelecer quais serão os ativos financeiros regulados, para fins desta Lei. 5
[Grifado]

Importante também destacar que, a Comissão de Valores Mobiliários, por sua vez, nos termos do seu Parecer nº 40/2021, entende que a categoria “token” abrange, por critério funcional, três espécies não estanques de criptoativos (obs.: a CVM entende que criptoativo é gênero que abrange as 3 espécies de tokens abaixo), quais sejam:

(i) Token de Pagamento (cryptocurrency ou payment token): busca replicar as funções de moeda, notadamente de unidade de conta, meio de troca e reserva de valor;

(ii) Token de Utilidade (utility token): utilizado para adquirir ou acessar determinados produtos ou serviços; e

(iii) Token referenciado a Ativo (asset-backed token): representa um ou mais ativos, tangíveis ou intangíveis.

São exemplos os “security tokens”, as stablecoins, os non-fungible tokens (NFTs) e os demais ativos objeto de operações de “tokenização”.6 [Grifado]

Não obstante a utilização de conceitos distintos entre a Receita Federal e a Comissão de Valores Mobiliários para o vocábulo “criptoativo”, o que não contribui para a segurança jurídica dos empreendedores e usuários do ecossistema da Web3, denota-se que os utility tokensforam afastados, pela CVM, da classificação genérica de asset-backed token que abrangeria os “security tokens”. 4

Ou seja, na prática, os utility tokens foram isentados da regulação dos valores mobiliários, pois em regra não se encaixariam dentre as hipóteses que atrairiam a regulação da Comissão de Valores Mobiliários, nos termos do já citado Parecer nº 40/2021:

Ainda que os criptoativos não estejam expressamente incluídos entre os valores mobiliários citados nos incisos do art. 2º da Lei nº 6.385/76, os agentes de mercado devem analisar as características de cada criptoativo com o objetivo de determinar se é valor mobiliário, o que ocorre quando:

(i) é a representação digital de algum dos valores mobiliários previstos taxativamente nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei nº 6.385/76 e/ou previstos na Lei nº 14.430/2022 (i.e., certificados de recebíveis em geral); ou

(ii) enquadra-se no conceito aberto de valor mobiliário do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76, na medida em que seja contrato de investimento coletivo.
Em outras palavras, quando a CVM entendeu por afastar os utility tokens das exigências burocráticas, regulatórias e legais, aplicáveis aos security tokens e, quando o legislador também entendeu por afastá-los do conceito de ativos virtuais (Lei nº 14.478/2022), o Estado promoveu a inovação (arts. 218 e 219 da CF/887 ; arts. 1, VIII; 19, VI e § 6º, V, VI e § 7º; 27, V e 28, ambos da Lei nº 10.973/20048 ), a livre iniciativa (arts. 1º, IV e 170, caput, da CF/88 e arts. 1º, caput e 4º, da Lei nº 13.874/20199 ), a vedação ao abuso do poder regulatório estatal (art. 4º e incisos da Lei nº 13.874/2019), a proteção de dados via blockchain (art. 5º, LXXIX, da CF/88 e Lei nº 13.709/2018) e atuou em consonância com a estrutura técnica desses tokens.

Porém, não é o que norteou o entendimento da Receita Federal do Brasil. E para além da discrepância quanto ao incentivo à inovação, livre iniciativa e liberdade econômica buscados pelo Sistema Financeiro Nacional, conforme exemplificado acima, infelizmente será constatado, no tópico a seguir, que a Receita Federal do Brasil equivocadamente desconsiderou o fato de que NFTs não são apenas representativos de bens imóveis, uma vez que podem representar (tokenizar), também de maneira
única e infungível, bens móveis corpóreos ou incorpóreos (v.g. digitais) ou direitos subjetivos decorrentes dos mais diversos negócios jurídicos!

2. DA DISCREPANTE SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT Nº 218/2019 DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL

Também para melhor esclarecer o incongruente entendimento da Coordenação-Geral de Tributação da Receita Federal, cito abaixo a ementa da referida Solução de Consulta:

SOLUÇÃO DE CONSULTA 218-COSIT-21 DE SETEMBRO DE 2023
Assunto: Obrigações Acessórias

A pessoa jurídica, mesmo não financeira, que disponibiliza plataforma digital em que seus usuários podem realizar transações com utility tokens diretamente entre eles (transações peer to peer), enquadra-se como exchange, restando obrigada a prestar, à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, as informações sobre as transações com criptoativos próprias e de seus usuários.

A pessoa jurídica que realiza emissão de utility tokens deve prestar as informações acerca dessa operação à RFB.

Dispositivos Legais: IN RFB nº 1.888, de 2019, arts. 5º e 6º.10 [Grifos do original]

Ora, a Receita Federal baseou equivocadamente seu entendimento na errônea afirmação de que Tokens Utilitários se enquadrariam como criptoativos e não como NFTs, em decorrência da parte final do teor do artigo 5º, I, de sua Instrução Normativa nº 1.888/2019, o que, consequentemente, também atrairia a incidência do conceito de “exchange” previsto no inciso II do mesmo artigo 5º, in verbis:

Art. 5º Para fins do disposto nesta Instrução Normativa, considera-se:
I – criptoativo: a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal; e

II – exchange de criptoativo: a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos.

Parágrafo único. Incluem-se no conceito de intermediação de operações realizadas com criptoativos, a disponibilização de ambientes para a realização das operações de compra e venda de criptoativo realizadas entre os próprios usuários de seus serviços. [Grifado]

Ocorre que, a tipicidade tributária para a aludida obrigação acessória exige, para a completude de sua regra matriz de incidência, a característica de “unidade de conta”, requisito evidentemente cumulativo também ausente em NFTs utilitários!

Além disso, os NFTs utilitários também detêm as características de infungibilidade descritas pela própria Receita Federal do Brasil, na Solução de Consulta COSIT 217/2023, como um dos critérios para se afastar a natureza jurídica de criptoativos!

Partindo-se destas constatações, este autor apresentará, no tópico a seguir, os fundamentos jurídicos que entende sustentarem a inconstitucionalidade e ilegalidade da Solução de Consulta COSIT 218/2023, além da já enfrentada discrepância quanto ao suporte fático que ocasionou a interpretação pela não incidência da obrigação acessória apenas às hipóteses previstas na Solução de Consulta COSIT 217/2023.

3. DAS INCONSTITUCIONALIDADES E ILEGALIDADES DA SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT Nº 218/2019

Inicialmente, assevera-se que este autor entende que, tanto a Solução de Consulta COSIT 218/2023, quanto a Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019, apresentam inconstitucionalidade formal, por violação aos artigos 5º, II; 84, inciso IV, última parte e 150, I, da CF/88.

Além disso, mais especificamente no que tange à discrepância entre a Solução de Consulta COSIT 217/2023 perante a de nº 218/2023, há também inconstitucionalidade material em decorrência da violação à proibição de tratamento diferenciado a contribuintes que se encontram em situação equivalente, em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica conferida ao token não fungível objeto das transações, emissões e custódias, de acordo com a previsão do artigo 150, II, da CF/88, in verbis:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios:

[…]

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;

Por outro lado, constatam-se violações ao Código Tributário Nacional, conforme será explanado. Primeiramente, destaca-se o teor do artigo 109, do Código Tributário Nacional, conforme segue:

Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.11

Ora, a definição de fungibilidade dos bens está prevista no artigo 85, do Código Civil Brasileiro, que dispõe:
Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. 12

Nesse sentido, a Receita Federal do Brasil não pode distorcer a definição de fungibilidade para um bem infungível, tal como são os NFTs utilitários, ou pretender incidir a característica de unidade de conta, típica de bens fungíveis utilizados como moeda (vide Leis nº 9.069/1995 e nº 4.595/1964), para tokens não fungíveis apenas pelo simples fato de possibilitarem acesso a serviços!

Desse modo, conclui-se pela evidente violação ao citado artigo 109 do Código Tributário Nacional.

Além disso, ressalta-se o teor do artigo 111, caput e inciso III, também do Código Tributário Nacional:

Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:
[…]

III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias.
Pois bem. o artigo 5º, incisos I e II, da IN RFB nº 1.888/2019, ainda que se entenda por formalmente constitucional, descreve as características dos criptoativos e exchanges para efeitos da obrigatoriedade de prestação de informações tributárias.

Desse modo, a dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias ocorreria quando ausentes os requisitos do artigo 5º, condição que deve ser interpretada literalmente.

Assim, não pode a Receita Federal do Brasil entender que, para NFTs representativos de imóveis, por não preencherem os requisitos de fungibilidade e unidade de conta dos criptoativos, não se aplica a obrigação acessória tributária prevista, mas para tokens utilitários não fungíveis, e também sem o valor de unidade de conta, incidiriam as características de criptoativos e, consequentemente, os deveres de prestação de informações tributárias previstos na citada IN RFB nº 1.888/2019.

Por conseguinte, também constata-se a violação ao inciso III, do artigo 111 do Código Tributário Nacional.

Ademais, destaca-se que, ainda que se entenda pela constitucionalidade e legalidade da interpretação tributária da Receita Federal do Brasil, proferida na Solução de Consulta COSIT nº 218/2023, e respondendo uma das principais angústias dos empreendedores do setor: não caberá defender a incidência retroativa da referida Solução de Consulta, para fatos anteriores à publicação da mesma, com a intenção de se aplicar as penalidades previstas no artigo 10, da IN RFB nº 1.888/2019, às pessoas
jurídicas intermediadoras, emissoras e custodiantes de NFTs utilitários que eventualmente não prestaram as aludidas informações tributárias.

Isso decorre da expressa vedação prevista nos artigos 106, I e 112, ambos do Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito:

I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados
[…]

Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I – à capitulação legal do fato;
II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;
III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;
IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

Assevera-se, ainda, que a interpretação equivocada e arbitrária, da Receita Federal do Brasil, tanto na IN RFB nº 1.888/2019, quanto na Solução de Consulta COSIT nº 218/2019, denota abuso do poder regulatório estatal, conforme previsão do art. 4º e incisos da Lei nº 13.874/2019, in verbis:

Art. 4º É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente:

I – criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes;
II – redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado;
III – exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado;
IV – redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco;
V – aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios;
VI – criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros;
VII – introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas;
VIII – restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal; e
IX – exigir, sob o pretexto de inscrição tributária, requerimentos de outra natureza de maneira a mitigar os efeitos do inciso I do caput do art. 3º desta Lei.

Por fim, destaca-se que, tanto a Solução de Consulta COSIT nº 218/2019, quanto a IN RFB nº 1.888/2019, também violam as regras previstas no artigo 4º-A, da Lei nº 13.8784/2019, nestes termos:

Art. 4º-A É dever da administração pública e das demais entidades que se sujeitam a esta Lei, na aplicação da ordenação pública sobre atividades econômicas privadas: (Incluído pela Lei nº 14.195, de 2021)
I – dispensar tratamento justo, previsível e isonômico entre os agentes econômicos; (Incluído pela Lei nº 14.195, de 2021)
II – proceder à lavratura de autos de infração ou aplicar sanções com base em termos subjetivos ou abstratos
somente quando estes forem propriamente regulamentados por meio de critérios claros, objetivos e previsíveis;

[Grifado]

4. CONCLUSÃO

Conforme asseverado, a Solução de Consulta COSIT nº 218/2023, da Receita Federal do Brasil, que determinou a incidência de obrigações tributárias acessórias para pessoas jurídicas envolvidas com operações relacionadas a tokens não fungíveis (NFTs) utilitários, suscita uma série de reflexões e questionamentos técnicos e jurídicos.

Além da discrepância no que concerne à realidade técnica da estrutura dos NFTs, distanciando-se do suporte fático da regra matriz de não incidência da obrigação acessória tributária de prestar informações, constatou-se a divergência da Receita Federal do Brasil entre os fundamentos e conclusões apresentados na Solução de Consulta COSIT nº 217/2023 perante os da Solução de Consulta COSIT nº 218/2023 e, até mesmo, diante da definição de “criptoativos” e “exchange” constantes da IN RFB nº 1.888/2019!

Por efeito, confirmou-se a inconstitucionalidade formal e material da Solução de Consulta nº 218/2019, bem como inúmeras ilegalidades por violação a diversos enunciados normativos do Código Tributário Nacional, ao Marco Legal da Inovação (Lei nº 10.973/2004) e à Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019).

Ressalta-se que, foi defendida a tese de impossibilidade da aplicação de multas pecuniárias por descumprimento de obrigação acessória, inclusive quanto aos anos anteriores à Solução de Consulta COSIT nº 218/2019, para as pessoas jurídicas que entenderem por evitar eventual discussão administrativa e judicial e seguir os ditames desta Solução de Consulta, mas que temem por sofrerem sanções retroativas por não prestação das informações exigidas pela IN RFB nº 1.888/2019, a qual
passou a produzir efeitos a partir de 1º de agosto de 2019, nos termos do artigo 13 da mesma.

Este autor destaca, ainda, que para as pessoas jurídicas optantes por aplicar retroativamente o entendimento da Solução de Consulta COSIT 218/2023, podem realizar a retificação das informações tributárias a partir de 1º de agosto de 2019, obviamente quanto aos anos de atividade, também não se aplicando multa quando as retificações forem supridas antes de iniciado qualquer procedimento de ofício por parte da Receita Federal do Brasil, nos termos do artigo 12, parágrafo único, da IN RFB
nº 1.888/2019.

Todavia, é tarefa deveras árdua e muitas vezes impraticável. Mas, conforme ressaltamos, o próprio Código Tributário Nacional afasta a retroatividade de interpretações oficiais do Fisco para aplicar penalidades, em respeito à segurança jurídica dos contribuintes.

Por fim, a luz que ilumina o caminho da regulação dos criptoativos e NFTs deve ser alicerçada na compreensão técnica, jurídica e econômica deste fenômeno, sempre com vistas a promover um ambiente seguro, justo e propício para o desenvolvimento e inovação. A jornada é complexa, mas a construção coletiva de um marco regulatório sólido e equânime é um desafio que, sem dúvida, tem o potencial de alavancar o Brasil como um protagonista no cenário cripto global.

O autor é professor de direito empresarial e internacional, mestre em direito e em educação, ambos pela UFMT, e advogado especialista em Blockchain, atuando em estruturações societárias, contratos, compliance legal e regulatório e propriedade intelectual do setor.

___________________________________________________________________________________________________________________

5. NOTAS
 1 COORDENAÇÃO-GERAL DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Solução de Consulta nº 217-COSIT-21/2023.
Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=133751> Acesso em: 02 out. 2023.
 2  RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019. Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action naoPublicado=&idAto=100592&visao=anotado> Acesso em: 02 out. 2023.
3 HOR, Benjamin et al. How to NFT. Cingapura: CoinGecko, 2022; p. 4-5.
 4 Id., 2022; p. 128.
5 BRASIL. Lei nº 14.478/2022. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14478.htm> Acesso em: 02 out. 2023.
6  COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Parecer nº 40/2021. Disponível em:<https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html> Acesso em: 02 out. 2023.
7 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 03 out. 2023.
8  BRASIL. Lei nº 10.973/2004 (Marco Legal da Inovação). Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.973.htm> Acesso em: 03 out. 2023.
9 BRASIL. Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13874.htm> Acesso em: 03 0ut. 2023.
10 BRASIL. Solução de Consulta COSIT nº 218/2023. Disponível em:<http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=133746> Acesso em: 02 out. 2023.
11 BRASIL. Código Tributário Nacional. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm> Acesso em: 03 out. 2023.
12 BRASIL. Código Civil Brasileiro. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm> Acesso em: 03 out. 2023.

5. REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Tributário Nacional. Disponível em<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm> Acesso em: 03 out. 2023.
Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 03 out. 2023.
Lei nº 10.973/2004 (Marco Legal da Inovação). Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.973.htm> Acesso em: 03 out. 2023.
Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica). Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13874.htm> Acesso em: 03 0ut. 2023.
Lei nº 14.478/2022. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2022/lei/L14478.htm> Acesso em: 02 out. 2023.
COORDENAÇÃO-GERAL DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Solução de Consulta nº 217-COSIT-21/2023.
Disponível em: <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=133751> Acesso em: 02 out. 2023.

COORDENAÇÃO-GERAL DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Solução de Consulta COSIT nº 218/2023. Disponível em <http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?idAto=133746> Acesso em: 02 out. 2023.

COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Parecer nº 40/2021. Disponível em <https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html> Acesso em: 02 out. 2023.

HOR, Benjamin et al. How to NFT. Cingapura: CoinGecko, 2022; p. 4-5.
RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019. Disponível em:<http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.actionnaoPublicado=&idAto=100592&visao=anotado> Acesso em: 02 out. 2023.

Deixe seu comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados *