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CVM, CFTC, Binance e a oferta de derivativos pela internet

Isac Costa*

Em 27/3, a Commodity Futures Trading Commision (CFTC), regulador norteamericano que tem competência sobre a negociação de contratos derivativos, formalizou denúncia contra a Binance pela oferta de contratos futuros de criptoativos sem registro prévio e outras irregularidades. Embora esse serviço venha sendo oferecido pela exchange liderada por Changpen Zhao (“CZ”) desde 2019, apenas agora há vontade política naquele país de apertar o cerco contra as empresas da criptoeconomia, na esteira dos diversos colapsos de 2022, como Terra/Luna, Celsius, BlockFri, Three Arrows Capital e FTX. Nesse texto, procuro contrastar o entendimento da CFTC e da CVM sobre a oferta de derivativos a pessoas domiciliadas em suas respectivas jurisdições, bem como as possíveis consequências para o mercado cripto do prosseguimento da atuação do regulador norte-americano.

No Brasil, a CVM já havia emitido um alerta (stop order) em 2020 contra a Binance por ofertar a intermediação de derivativos sem autorização prévia. O problema foi contornado pela desabilitação do serviço para clientes da Binance que selecionassem o idioma português brasileiro, solução aceita pela CVM. Posteriormente, foi noticiado que o suporte da exchange orientava seus clientes brasileiros a selecionar o idioma português de Portugal, onde o serviço ainda estava disponível. Ao fazer esta opção, é apresentada uma tela de aviso sobre a ciência da impossibilidade da oferta e assunção de risco pelo cliente, que pode prosseguir por sua conta – um arranjo que exclusão de responsabilidade da exchange que suscita controvérsias se considerarmos que se trata de uma relação de consumo.

Além disso, imagine uma proibição de oferta de um serviço a cidadãos norteamericanos resultar na sua desabilitação quando o idioma selecionado é o da bandeira dos EUA, mas sua manutenção se o idioma é o da bandeira do Reino Unido – isso seria o suficiente para cumprir um comando de proibição de oferta a norte-americanos? Ou seria necessário, por exemplo, considerar o endereço IP e os dados cadastrais do cliente?

A CFTC tratou expressamente dessa possibilidade, como veremos a seguir. Nos Estados Unidos, os contratos de investimento coletivos (securities), que englobam ações e cotas de fundos de investimento, dentre outros, são regulados pela Securities and Exchange Commision (SEC). Já os contratos derivativos (derivatives) são regulados pela CFTC.

De acordo com a denúncia da CFTC (de 74 páginas) contra a Binance, CZ e Samuel Lim (Diretor de Operações), a atividade da Binance exigiria registro prévio na CFTC, bem como a adoção de controles próprios para prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo que não teriam sido verificados na prática. A conduta adotada por eles e a ineficiência de seus controles internos não corroborariam as manifestações públicas de que a exchange estaria realizando os melhores esforços para restringir ou bloquear transações de clientes norte-americanos, inclusive direcionandoos para a entidade local Binance.US.

Os funcionários da Binance teriam orientado seus clientes a utilizarem mecanismos para disfarçar sua localização (como o uso de Virtual Private Networks – VPN) e orientado seus clientes “VIP” dos Estados Unidos a realizar transações em nome companhias de fachada em outras jurisdições. Em um documento mencionado pela CFTC, há a orientação de informar a esses usuários VIP, no caso de investigação de contas por autoridades nos seguintes termos: “não diga diretamente para o usuário correr [sacar seus fundos], mas sim que seus recursos foram desbloqueados após investigação por XXX” e que “se o usuário é um trader relevante ou inteligente, irá inferir a dica”.

Adicionalmente, os canais de comunicação utilizados entre funcionários e entre estes e os clientes (especialmente o Signal) teriam sido deliberadamente escolhidos para evitar a preservação do teor das mensagens e auditoria posterior.

Por fim, a Binance teria atuado como contraparte da negociação com seus clientes sem tê-los notificado a respeito. A regulação do mercado tradicional exige essa transparência para prevenir a práticas não equitativas, em que a corretora captura para si os melhores preços em detrimento do interesse de seus clientes – em certos casos, embora tenham a ilusão de que estão pagando menores taxas de corretagem, o custo de sua operação é maior em razão da distorção inserida nos preços.

Em nosso país, os derivativos são considerados valores mobiliários, conforme a Lei 6.385/1976 (art. 2º, VII e VIII). A mesma lei exige, em seu art. 16, que a oferta de serviços de intermediação de operações com derivativos no Brasil exige autorização prévia da CVM e, ainda, sua negociação deve ocorrer apenas em mercados organizados de valores mobiliários – apenas a B3 tem autorização de mercado de bolsa e de balcão e os contratos futuros e de opções são analisados previamente pela CVM antes de serem disponibilizados para negociação. No Brasil, por exemplo, não são permitidas as opções binárias, bastante populares em anúncios na internet muito parecidos com os de casas de apostas.

Nesse contexto, a mera contratação de um representante legal no país ou a compra de uma corretora (caso da Binance envolvendo a sim;paul) não seria suficiente para a regularidade da oferta de derivativos, pois o ambiente no qual são negociados também precisaria ter autorização da CVM como mercado organizado (tema da Instrução CVM nº 135/2022). Inclusive, a autorização da aquisição da sim;paul ainda está em análise pelo Banco Central e não se sabe se a atuação da CFTC pode influenciar esse processo. Conforme levantamento pelo Valor, nada menos que 28 ações de enforcement em 24 países diferentes, envolvendo lavagem de dinheiro e operações sem autorização prévia exigida por lei, de modo que a aprovação sem restrições destoaria do rigor tradicional do escrutínio realizado pelo Banco Central. Apesar disso, a Binance obteve licenças precárias (porque não há um regime claro sobre criptoativos) em jurisdições como Dubai, Bahrain, França, Itália, Espanha, Cazaquistão, Chipre e Suécia. A exchange continua a defender publicamente seu interesse em cooperar com as autoridades de cada país, apesar de ainda não ter sede definida em nenhum deles, nem patrimônio suscetível de alcance para pagar indenizações em ações de ressarcimento ajuizadas pelos investidores.

De acordo com o Parecer de Orientação CVM nº 33/05, a utilização de meios de comunicação “destinados a atingir o público em geral residente no Brasil” é um critério relevante para verificação de oferta pública irregular, inclusive no tocante à utilização do idioma. Posteriormente, no Parecer de Orientação CVM nº 40/2022, a autarquia sinalizou que “também é relevante a existência de texto para atrair investidores residentes no Brasil, ainda que em idioma estrangeiro” e “deve-se avaliar se há emprego de medidas efetivas com o intuito de impedir que investidores residentes no Brasil tenham acesso ao conteúdo da página”.

Com base no entendimento da CFTC e nos pronunciamentos da própria CVM em seus Pareceres de Orientação, tanto os empreendedores como os investidores seriam beneficiados com uma manifestação mais clara do nosso regulador a respeito dos requisitos para a oferta de prestação de serviços de intermediação de derivativos referenciados em criptoativos. Além da Binance, a Deribit e a ByBit também são exchanges que protagonizam esses mercados e o próprio conceito de derivativo precisa ser contrastado com uma aposta pura e simples, a fim de definir se a CVM tem competência sobre o tema ou se é um assunto para a regulação de jogos de azar.

O mercado norte-americano é bastante relevante para os negócios da Binance e de diversas empresas da criptoeconomia. Se o cerco das autoridades daquele país continuar a ser intensificado, será necessário que esse mercado, finalmente, se distancie do setor de apostas e pura especulação e passe a oferecer alternativas de financiamento das empresas e efetivo valor nas aplicações de tecnologias de registro distribuído. Caso contrário, a criptoeconomia será conhecida como mera criptomania, sendo relegada ao status de marginalidade, sem que faça sentido recepcioná-la no sistema financeiro, por mais sofisticado e legítimo que as narrativas públicas possam tentar fazê-la parecer, posto que destinada apenas a libertários mais radicais ou incautos hipnotizados por uma corrida do ouro, estelionatários e outros criminosos.

*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.

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