A Anbima publicou recentemente um conjunto de regras atualizadas sobre governança e diligência para fundos e carteiras administradas que investem diretamente em criptoativos. Trata-se de mais um passo em um longo caminho para a convergência entre o mercado tradicional e o mercado cripto no Brasil.
A relação entre fundos de investimento e criptoativos em nosso país remonta ao início de 2018, quando a CVM sinalizou que administradores e gestores de fundos constituídos no país deveriam aguardar “manifestação posterior e mais conclusiva” sobre a possibilidade de investirem “em outros veículos, constituídos em jurisdições onde eles sejam admitidos e regulamentados, e que por sua vez tenham por estratégia o investimento em criptomoedas […ou,] ainda, em derivativos admitidos à negociação em ambientes regulamentados de outras jurisdições”. Ou seja, não havia um sinal verde para o investimento em criptoativos, ainda que de forma indireta.
À época, o regulador brasileiro manifestava preocupação com a eclosão de “initial coin offerings” (ICO), que poderiam ser consideradas ofertas irregulares de valores mobiliários. A ausência de informações sobre o tema, bem como o vácuo regulatório e a grande incidência de golpes foram fatores que dificultaram o desenvolvimento da criptoeconomia no Brasil naquele período.
O ano de 2018 foi marcado por uma “era glacial” com forte depreciação das cotações de todos os criptoativos, ainda predominantemente referidos como criptomoedas. Vários projetos fracassaram diante da baixa adesão de usuários, de limitações da tecnologia ou da prática de fraudes.
Apesar disso, a Superintendência de Investidores Institucionais (SIN) da CVM editou novo Ofício em setembro daquele ano, autorizando o investimento em cotas de fundos e derivativos em outras jurisdições, desde que fossem admitidos e regulados em tais mercados no tocante à alocação ou referência em criptoativos. A SIN ressalvou que caberia aos gestores e administradores diligenciarem para que a negociação de criptoativos fosse realizada em ambientes capazes de atender às exigências regulatórias.
Dada a limitação para investimento em ativos no exterior aplicável a fundos acessíveis a investidores de varejo (apenas 20% do patrimônio líquido), os novos produtos criados não foram capazes de atender à demanda específica por criptoativos, sobretudo, pelo público em geral. Investidores qualificados e institucionais ainda hesitavam em entrar em um mercado sem regras claras e marcado por alguns estereótipos associados a eventos como, por exemplo, a pirâmide da Atlas Quantum.
ETFs de cripto entram em cena
A solução para permitir o acesso, por investidores de varejo, a criptoativos por meio de fundos de investimento viria apenas em 2021, quando a CVM autorizou a criação de fundos negociados em bolsa (ETFs) referenciados em índices de criptoativos. Houve adesão relevante e, em pouco tempo, produtos como HASH11 e QBTC11 se tornaram populares, alcançando patrimônio líquido e número de investidores consideráveis para uma categoria de produto tão nova.
A preferência por investimentos em criptoativos via fundos causa certa perplexidade para quem acompanha o setor desde o início. Afinal, desde a criação do bitcoin, a premissa dos sistemas descentralizados é a eliminação de intermediários com potencial redução de custos e maior controle dos ativos pelos próprios usuários.
Porém, a dificuldade na manutenção de carteiras e chaves, a falta de informação sobre os riscos de segurança cibernética e a comodidade da negociação por meio de exchanges centralizadas fizeram com que a experiência de usuário se tornasse semelhante à do mercado financeiro tradicional: os investidores desejavam abrir contas, depositar saldos, realizar operações em um livro central de ofertas e fazer resgates como em uma corretora tradicional.
Ainda, as falhas operacionais e golpes associados a certas exchanges e a incerteza regulatória fizeram com que investidores optassem por acessar essa modalidade de investimento por meio de veículos regulados, pois, ao menos em teoria, seria possível responsabilizar o gestor ou o administrador fiduciário.
Dessa maneira, um mercado concebido com o fundamento de você “ser o seu próprio banco”, reduzir o número de intermediários e viabilizar transferências diretas entre pessoas acabou se tornando uma opção de investimento alternativo mediante o pagamento de taxas de administração, corretagem e custódia a intermediários capazes de dar algum nível de segurança aos investidores.
Queimando a largada
Infelizmente, o mercado cripto atingiu um topo histórico em 2021 e os retornos dos primeiros ETFs aprovados no Brasil desde o seu lançamento não corresponderam às expectativas criadas na euforia inicial.
O ano de 2022 trouxe um novo e longo inverno (ou seria inferno?), acelerando a quebra de inúmeras empresas do setor. Terra/Luna, BlockFi, Celsius, Three Arrows Capital, FTX e outras entraram para a galeria de fósseis do mercado cripto, extintas por modelos de negócios alavancados, fraudes e diminuição de apetite pelo risco pelos investidores em um cenário de aumento de taxa de juros.
Enquanto isso, algumas gestoras, como Grayscale, BlackRock, Fidelity e Ark, entraram com pedidos de autorização para lançar ETFs de bitcoin à vista junto à Securities and Exchange Comission (SEC). O regulador norte-americano estava negou o pedido, com a justificativa de que a ausência de um mercado secundário regulado poderia levar a abusos de mercado, tais como manipulação e insider trading, além da falta de transparência na prestação de informações pelos emissores de tokens e outras empresas do setor e da dificuldade de supervisão de um mercado global e fragmentado.
As gestoras norte-americanas precisaram recorrer ao Poder Judiciário daquele país para que a SEC reconsiderasse sua decisão e, finalmente, no início de 2024, os ETFs de bitcoin foram aprovados e, em seguida, ofertados ao público.
ETFs de cripto nos Estados Unidos: um novo capítulo
O momento do lançamento do produto nos Estados Unidos foi mais favorável do que no Brasil, afinal, desde o final de 2022 as cotações da maior parte dos criptoativos se recuperaram vertiginosamente, rumo a novos topos históricos. Há quem diga que boa parte dessa recuperação se deveu à antecipação, pelo mercado, da aprovação dos ETFs de bitcoin nos Estados Unidos, o que levaria à entrada de investidores institucionais nesse mercado, dada a maior segurança em investir por meio de um produto regulado.
A expectativa se concretizou e, em poucos meses, cerca de US$ 50 bilhões foram aportados em ETFs de bitcoin.
Essa alta favoreceu também os ETFs brasileiros, que, ao longo de 2023, despontaram como os ativos com maior valorização no mercado nacional, contrastando com o marasmo da bolsa, marcando passo ou mesmo perdendo rounds na luta contra os movimentos das taxas de juros.
Investimento direto por meio de fundos
No bojo da reforma da norma de fundos, a CVM passou a permitir o investimento direto dos fundos brasileiros em criptoativos, no limite de 10% de seu patrimônio líquido. A autorização ainda está longe de tirar o protagonismo dos ETFs, mas é um sinal de que criptoativos estão sendo levados a sério como ativos financeiros, a despeito das inúmeras “sentenças de morte” proferidas sobre esse mercado ao longo dos últimos anos.
Considerando a incerteza com relação à negociação e custódia de criptoativos e a renitente ausência de regulação da prestação de serviços no setor (apesar da Lei nº 14.478/2022, a regulação do Banco Central ainda tardará a ser editada e ser aplicável no Brasil), cabe às gestoras e administradoras a adoção as devidas diligências para fazer com que a autorização que ETFs e a permissão trazida na Resolução CVM nº 175/2022 não se torne um “Cavalo de Troia” para o mercado tradicional.
Em essência, as recomendações da Anbima complementam a norma da CVM e procuram endereçar as principais incertezas desse mercado: esclarecer os critérios para a escolha dos criptoativos (dentre um enorme universo, cheio de armadilhas), os procedimentos de negociação (em que ambiente, quais os custos) e custódia (como são geridas as chaves para evitar a perda de ativos e mitigar o risco de ataques cibernéticos) e os métodos de precificação – uma espécie de alquimia, diante da grande volatilidade desses ativos e a ausência de fundamentos econômicos tradicionais para viabilizar a aplicação de técnicas usuais de valuation.
Enquanto a neblina de incerteza parece se dissipar com o nascer do Sol de um verão cripto, potencializado por iniciativas regulatórias bem-vindas como as da CVM e da Anbima (ou, ainda que a contragosto, como no caso da SEC), a evolução da relação entre fundos de investimentos e criptoativos parece sugerir que, ao fim e ao cabo, o mercado cripto foi atraído pela força gravitacional das instituições incumbentes e ainda não houve uma revolução libertária ou uma disrupção genuína em termos de inovação financeira.
Obviamente, quem acompanha a evolução desse mercado há algum tempo pode discordar dessa conclusão – afinal, uma valorização de $0,01 para $0,90, por exemplo, é enorme em termos percentuais, mas o valor absoluto ainda é o de uma penny stock. Aguardemos os próximos capítulos dessa intrincada – e emocionante – novela (ou, para os mais jovens, o próximo episódio dessa temporada).
*Isac Costa é advogado, professor do Insper e da LegalBlocks. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.
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