Antes de tudo, recomendo que você leia esse texto ouvindo a música “Isis”, de Bob Dylan, lançada no seu álbum “Desire” em 1975, e com uma excelente versão ao vivo disponível no documentário de Martin Scorsese sobre a turnê de Dylan naquele ano. Para mim, a letra dessa canção pode ser, ao mesmo tempo, um hino e uma profecia sobre a história do bitcoin.
Nos últimos anos, a mesma manchete aparece em vários lugares no dia 22 de maio sobre como, em tempos distantes, duas pizzas foram vendidas a 10 mil bitcoins, cifra que variou entre US$ 200 e 600 milhões nos últimos anos. Outras histórias também entraram no “folclore cripto”, tal como a do indivíduo que jogou no lixo um disco rígido com sua chave privada e gastou milhões para tentar recuperá-la, pessoas que esqueceram seus saldos e depois descobriram que tinham milhões, e assim por diante. Tudo isso nos leva a uma questão primordial: qual é o combustível para o movimento dos preços do bitcoin?
Inicialmente, vale destacar que, no caso da lendária pizza, não costumamos lembrar de que a pizzaria não aceitou a criptomoeda, mas sim um intermediário que a comprou e entregou ao ofertante, o que, ironicamente, é mais um indício de que o bitcoin ainda não cumpre sua pretensa função de meio eletrônico de pagamento. Na visão original dos seus criadores, buscava-se a realização de transferências entre pessoas de um saldo em ativos digitais segundo regras pré-estabelecidas em códigos, com resistência à intervenção de Estados ou empresas e sem necessidade de identificação dos beneficiários. Entretanto, a solução desenvolvida, em sua versão original, não suporta um volume de transações elevado nem oferece velocidade no seu processamento. O software não foi criado para ser tão eficiente como os cartões de crédito ou carteiras digitais centralizadas.
Então, se o bitcoin não é compatível com uma adoção em massa e um efeito de rede relevante, se a liquidez e a escala de transações genuinamente descentralizadas são incipientes, o que motiva a expectativa de aumento dos seus preços, apta a justificar que se trata de um investimento? Igualmente, se não podemos associar ao bitcoin um fluxo de caixa semelhante ao de outros ativos, como mensurar um eventual benefício econômico futuro e avaliar seu “preçoalvo”? Trago três hipóteses que procuram responder a essa questão: o bitcoin é (i) uma fraude; (ii) um ativo cujos preços decorrem da interação entre agentes de mercado; (iii) uma narrativa socialmente compartilhada que vale enquanto nela acreditarem.
Há vozes que dizem que o bitcoin e a maior parte (ou todas) as criptomoedas são meros esquemas Ponzi ou pirâmides financeiras, com os preços sendo impulsionados pela entrada de novos tolos. Essa hipótese ajudaria a explicar, por exemplo, o caráter missionário ou evangelizador de muitos entusiastas, pois a manutenção desse mercado dependeria da expansão de sua base de crentes. Jemima Kelly, jornalista do Financial Times e crítica contumaz do mercado cripto, chegou a comparar esse fenômeno com seitas religiosas. Admito que a analogia é pertinente, dada a formação de grupos coesos e catequizadores, o estado de negação de fiéis, mesmo após o colapso do projeto em que acreditavam, a euforia em movimentos extremos de preços como louvor em um culto fervoroso e a serenidade com que gurus e “founders” desqualificam críticas (vide a arrogância de Do Kwon do projeto Terra/Luna ou o constante comando de “ignorem FUD” de CZ). Outro ponto curioso é a criação de um vocabulário próprio com novos termos para palavras comuns, uma prática usual em seitas como Heaven’s Gate ou NXIVM. O uso de ataques ad hominem contra críticos (xingamentos e agressividade direta e pessoal) também é um indício nesse sentido.
Uma segunda hipótese, menos cínica, que procura explicar o movimento dos preços do bitcoin é calcada na liberdade dos agentes econômicos e nas forças de mercado, aludindo aos gráficos de oferta e demanda de livros de economia ou aos padrões de análise gráfica de preços. Ignorando algum fundamento específico, muitos analisam os dados históricos e descartam, no todo ou em parte, a eficiência dos mercados, procurando identificar padrões ou indicadores estatísticos que sinalizem pontos de entrada e de saída. Nesse sentido, em vez de ser uma fraude ou uma “hóstia”, o bitcoin estaria mais próximo de uma “ficha de cassino”, um token apto a recompensar os bons navegantes do mar da aleatoriedade, que apenas aceitam e surfam as ondas, sem se importar com sua origem.
Essa hipótese é corroborada pelas consequências do surgimento de exchanges centralizadas como ambientes de negociação que realizam a compensação e liquidação das transações fora do registro distribuído. Distanciando-se da visão originalmente centralizada do bitcoin, essas transações orientam o movimento dos preços no curto prazo, com a interação entre compradores e vendedores em livros de ofertas e a publicação de preços que orientam os participantes do mercado.
Assim, o bitcoin e outros criptoativos são cotados e analisados como ações ou outros instrumentos negociados em bolsa, permitindo uma dissociação entre preço (expresso pelo histórico de operações) e valor (lastreado em algum fundamento econômico). Nesse caso, uma vez que a liquidez seja estabelecida e formadores de preços e arbitradores começam a atuar, o porquê do movimento dos preços é ofuscado pelo teatro tragicômico de vieses cognitivos e a cenografia de análises e recomendações de investimentos.
Ainda, temos a terceira hipótese, qual seja, a de que o bitcoin pode substituir o ouro como reserva de valor, uma vez que possui os atributos de fungibilidade, durabilidade, transferibilidade e, sobretudo, escassez. Mesmo sendo uma representação digital (e, por isso, facilmente replicável), o software permite o controle da sua utilização e sua política monetária impede a criação indiscriminada de novos bitcoins. Assim, o único elemento que faltaria para que se tornasse uma reserva de valor global seria a fé, isto é, a crença compartilhada pelos agentes econômicos. Em outros termos, “se organizar direitinho”, vale alguma coisa (ou muito!).
Detratores dessa hipótese afirmam que a volatilidade nos preços do bitcoin é incompatível com a de um ativo que possa servir de reserva de valor. Essa objeção me leva a refletir como teria sido o processo de adoção do ouro ou da prata, quando não havia uma economia monetária nos termos atuais. Como teria variado a referência de valor do outro em termos de quantidade de prata ou outras mercadorias? Qual teria sido a variação dessa referência diante da descoberta de novas reservas? Quanto tempo teria sido necessário para a obtenção de um consenso em torno de seu caráter de reserva de valor?
Independente da resposta a essas perguntas, sabemos que o funcionamento da nossa sociedade depende de “ordens imaginadas” ou narrativas compartilhadas para que possamos cooperar além dos nossos laços genéticos e nos organizarmos em arranjos complexos. Ideias (ou “memes”, em um sentido mais geral do termo, cunhado por Richard Dawkins) como dinheiro, Estado, religião, família e outras nos ajudam a viver em sociedade, como explica didaticamente Yuval Harari em seu best-seller “Sapiens”. E o valor é um fenômeno social, decorrente de crenças coletivas, como descreve o antropólogo David Graeber em “Dívida: os primeiros 5.000 anos”.
Com o bitcoin, não seria diferente. Após sua “viralização”, enquanto houver quem acredite no seu valor, haverá uma expressão monetária da expectativa em torno de sua valorização futura. Penso que essa hipótese é a mais apta a descrever o movimento dos preços do bitcoin em um prazo mais longo.
Por fim, deixo dois ditados relevantes para essa discussão. Primeiro, se você tem que explicar que algo não é uma pirâmide, é quase certo de que se trata de uma pirâmide. Segundo, quem pensa demais não ganha dinheiro. Assim, enquanto muitos teorizavam sobre o que move os preços do bitcoin, surgiu um mercado trilionário que atraiu o interesse de aventureiros, piratas, profissionais, especialistas, empreendedores, incumbentes, políticos e reguladores. Se as narrativas são mitológicas ou não, seus efeitos são reais nos bolsos e nas vidas das pessoas que perderam e que ganharam dinheiro na criptoeconomia (ou criptomania, como preferir). Deixo para você, que me lê, produzir o significado do que isso diz a respeito de nosso mercado e de nossa sociedade.
*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre
(FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde
também atuou como assessor do Colegiado.
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