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SEC v. Ripple: um novo capítulo na regulação de ativos virtuais

Isac Costa*

Uma decisão recente de um tribunal norte-americano reconheceu que, em determinadas circunstâncias, o token XRP, emitido pela empresa Ripple, pode não ser um valor mobiliário (security) e, portanto, não seria necessário seu registro perante a Securities and Exchange Commision (SEC), regulador do mercado de capitais dos Estados Unidos. Embora preliminar, esse entendimento teve impacto relevante nas cotações do XRP (que teve uma alta de mais de 70% no dia 13/7) e de vários outros criptoativos.

Creio que existem três motivos pelos quais a decisão final desse caso será decisiva para o futuro da criptoeconomia em todo o mundo. Em primeiro lugar, a existência de um mercado cripto nos Estados Unidos contribui para a realização de investimentos em empresas no setor, o aumento de liquidez nos mercados e, principalmente, do volume financeiro. Com o cerco regulatório da SEC, diversas empresas estão deixando aquele país, direcionando os polos de inovação (e especulação) para jurisdições como Hong Kong, Cingapura, Dubai e outros países da União Europeia. A título de comparação, não haveria como conceber um mercado de capitais global sem a presença da NYSE, Nasdaq e outros atores norte-americanos.

Em segundo lugar, se o token XRP não for considerado valor mobiliário em certas hipóteses, é muito provável que boa parte do mercado procure adaptar as características de tokens novos e atuais para evitar a regulação pela SEC.

Em 2017, quando da eclosão de ofertas públicas de tokens – as chamadas initial coin offerings (ICOs) – foi criada a narrativa de tokens de utilidade (utility tokens), que não ofereceriam expectativa de benefício econômico decorrente do esforço dos emissores e, por isso, não seria valor mobiliário (security token). A meu ver, essa fuga do radar regulatório gerou inúmeros tokens que não têm essência econômica, não representam fluxos de caixa ou direitos relevantes, com suas cotações flutuando exclusivamente em função de apostas, desnaturando-se em fichas de um cassino sofisticado.

Em terceiro lugar, o entendimento dos tribunais norte-americanos pode influenciar os reguladores de todo o mundo na análise de casos concretos. Particularmente no Brasil, há uma discussão em curso sobre a qualificação de tokens como valores mobiliários quando o benefício econômico esperado pelo seu comprador decorre exclusivamente da variação dos preços em
exchanges.

O cerne da questão envolve o grau de contribuição da empresa que emite o token para a geração do benefício econômico, especialmente no controle da escassez (preço e quantidade de emissões e resgates), listagem (esforços para listar os tokens em exchanges), governança (decisões sobre direitos e regras atreladas aos tokens), divulgação e seleção de ativos subjacentes, no caso de operações de tokenização. Nessa última hipótese, merece destaque o Ofício-Circular nº 6/2023/CVM/SSE de 5/7, segundo o qual os tokens de renda fixa ou de recebíveis geram expectativa de benefício econômico que pode decorrer do esforço de seus emissores e, por isso, só poderiam ser ofertados mediante registro prévio na CVM, que está se esforçando para conciliar a criatividade do mercado e as normas de crowdfunding da Resolução CVM nº 88/2022.

Em síntese, a decisão do caso SEC v. Ripple pode representar mais um capítulo na “expulsão” das empresas cripto dos Estados Unidos pela via do enforcement e uma diretriz para, de um lado, os atores do mercado e, de outro, os reguladores na discussão a respeito de quando um token deve ou não ser objeto da regulação tradicional.

É importante lembrar que grande parte dos criptoativos traz em seu DNA, por assim dizer, um imperativo de liberdade e resistência à intervenção estatal. Logo, seria natural esperar que as empresas que emitem tokens e aqueles que os negociam desejassem atuar fora do radar das autoridades, fruindo os benefícios do pseudo-anonimato nas transações e sua independência dos sistemas de pagamentos e políticas monetárias dos Estados. Some-se a isso certo ceticismo, desencanto, frustração ou até mesmo revolta de parte dos atores econômicos com relação à regulação estatal em suas múltiplas dimensões, notadamente as falhas em proteger investidores e prevenir conflitos de interesses na prestação de serviços financeiros, uso indevido de informação privilegiada e manipulação de preços.

Por outro lado, instituições financeiras tradicionais exigem segurança jurídica para que possam investir na criptoeconomia, o que levou a debates que culminaram na edição de códigos de autorregulação (caso da ABCripto no Brasil) com compromissos de empresas com a conformidade regulatória (prevenção à lavagem de dinheiro, evasão de divisas e sonegação fiscal, por exemplo) e a normas como a diretiva Market in Crypto Assets (MiCA) na União Europeia e a Lei nº 14.478/2022 no Brasil, além dos esforços da CVM e, em breve, do Banco Central.

Por mais paradoxal que uma regulação desse setor possa parecer aos entusiastas da liberdade econômica, a disciplina jurídica é uma condição necessária para calibrar as expectativas e incentivos dos participantes da criptoeconomia, que se distancia de uma criptomania sem lei (ou, melhor dizendo, pautada pela lei do mais forte ou do mais “esperto”). Ao contrário do que alguns imaginavam, o setor continua forte e, a cada vez que sua morte é decretada, parece ressurgir das cinzas com novas valorizações de preços e relatórios que sugerem que o bitcoin irá valer centenas de milhares ou mesmo milhões de dólares no futuro próximo. Afirmações como essa foram consideradas loucura durante os invernos cripto de 2018 e 2022.

Quer sejamos mais libertários ou intervencionistas, precisamos de respostas para certas situações-problema, algumas das quais encontramos no caso SEC v. Ripple. Por exemplo, a transparência nas operações realizadas pelos fundadores de uma empresa com os ativos por ela emitidos é importante para a tomada de decisão dos investidores. Uma venda em massa de ações de uma companhia por seus executivos e empregados pode significar uma necessidade de liquidez ou uma fuga porque más notícias virão. Um argumento apresentado pela SEC foi o lucro auferido pelos fundadores da Ripple com vendas de seus tokens sem a devida informação ao mercado, a qual seria obrigatória nos moldes da regulação tradicional (com registro da empresa emissora e da oferta), assim como a publicação de demonstrações financeiras, de modo a orientar a análise do risco da operação pelos investidores.

Adicionalmente, no processo de oferta pública, a regulação exige a prestação de informações suficientes, adequadas e verdadeiras sobre a empresa e os ativos ofertados. Há quem afirme que um prospecto de conteúdo complexo e extensivo é ineficaz, funcionando muito mais como uma apólice de seguro do que como material apto a subsidiar a decisão dos investidores.

Ainda, o exame feito pelas autoridades é estritamente formal, não havendo chancela do mérito da operação, resultando em uma crítica sobre a efetividade desse requisito. Por outro lado, a ausência de informações com conteúdo mínimo e algum controle pode resultar em materiais que induzam investidores em erro, explorando vieses cognitivos e mesclando dados factuais com expectativas (não raro excessivamente otimistas ou até mesmo fraudulentas).

Por fim, sem transparência nos negócios envolvendo tokens, não há como saber se uma alta de preços resulta de um aumento legítimo da demanda ou de operações simuladas, muito menos se investidores que “sabem mais” (porque possuem informações sobre os negócios da empresa) atuam com vantagem sobre os demais participantes do mercado ou, ainda, se os preços apresentados nos livros de ofertas não foram adulterados para permitir que certos atores lucrem com diferenças de preços sem incorrer em riscos.

Para os pontos aqui mencionados, tenho dúvidas se um registro prévio da Ripple ou da oferta do token XRP seria suficiente para mitigar os riscos e proteger os investidores, como alega a SEC, mas uma liberdade completa parece também não ajudar muito. Será que a regulação vigente nos Estados Unidos e, de modo geral, nos mercados em todo o mundo, inclusive no brasileiro, precisa de alguma flexibilização para acomodar não apenas os criptoativos, mas também reduzir os encargos impostos ao mercado? No fim, essa questão importa muito mais do que definir se um token é ou não um valor mobiliário.

Enquanto gastamos energia para filtrar “falsos positivos” (esquemas fraudulentos que se apresentam como legítimos), dificultamos o acesso dos “falsos negativos” (negócios legítimos que precisam de financiamento) à poupança popular. Para alguns, o atual estado de coisas tem sido benéfico (e muito lucrativo). Porém, precisamos sempre ponderar o preço que todos nós pagamos pela sua existência e aparato fiscalizatório com a efetividade da regulação do mercado.

Em outros termos, precisamos ficar alertas sobre em que medida os efeitos colaterais – em termos de aumento do custo do capital e ineficácia na proteção de investidores – dos mecanismos regulatórios não têm sido mais relevantes que os sintomas e causas das falhas de mercado que buscamos remediar.

*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.

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