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Tokens servem apenas para criminosos e apostadores?

Um argumento recorrente a respeito de criptoativos é que se prestam apenas à prática de crimes (pelo abuso da privacidade) ou são meras fichas de um cassino digital disfarçado de inovação.

A legitimidade da inovação decorrente da criptoeconomia requer o enfrentamento de uma questão que, a meu ver, deveria ser mais debatida: por que recorrer a tokens em blockchain quando a maior parte dos ativos existentes já é eletrônica?

Há quatro problemas do mercado tradicional para os quais a utilização de tecnologias de registro distribuído pode ajudar.

Primeiro, as transferências internacionais de recursos são caras, burocráticas e demoradas. Além da opacidade nas taxas cobradas pelas instituições financeiras e da complexidade regulatória em função do controle dos balanços de pagamentos e mecanismos para prevenir crimes financeiros, essa limitação decorre de interoperabilidade insuficiente entre os sistemas de pagamentos dos diversos países. Apesar das limitações de escalabilidade e segurança de sistemas descentralizados, é possível pensar em arquiteturas que modernizem ou substituam os sistemas atuais de pagamentos internacionais, propiciando, inclusive, maior transparência na formação de spreads.

Segundo, o processo de captação de recursos pelas empresas é caro, burocrático e geograficamente limitado. Infelizmente, muitas emissões de criptoativos que são valores mobiliários ocorreram para burlar os controles estatais que exigem registro prévio das companhias abertas e ofertas públicas. No entanto, a tecnologia existente fornece uma infraestrutura que permite a emissão, negociação e custódia dos criptoativos que pode reduzir custos e permitir o acesso a mercados globais, desde que seja acompanhada de uma solução que conecte essas infraestruturas de mercado financeiro aos sistemas de pagamento para fins de compensação e liquidação das operações.

O tema é complexo e desafiador, mas a existência de mercados globais com múltiplas praças de negociação funcionando 24×7 com a presença de arbitradores auxiliando na convergência de preços e a relativa simplicidade na operacionalização da emissão de tokens nos convidam a refletir um pouco mais sobre como as infraestruturas de mercado financeiro atuais podem sofrer algum tipo de disrupção.

Nesse contexto, a emissão e a negociação de certos ativos podem ser facilitadas, incrementando opções de diversificação de investimentos pela oferta de novos produtos financeiros. Por exemplo, por que Nubank, XP ou o Banco Inter precisam decidir se irão ter suas ações negociadas em uma única praça? Ou, ainda, a despeito da importante questão da adequação do risco de investimento ao perfil de risco do investidor, por que não podemos negociar tokens de precatórios, cotas contempladas de consórcio, créditos de carbono e outros produtos que têm sido objeto de operações de tokenização? Haveria, ao menos em teoria, ampliação do acesso ao mercado de investimentos alternativos.

Terceiro, os níveis de maturidade dos meios eletrônicos de pagamento são muito heterogêneos em diversos países, assim como o grau de formalidade na economia. Enquanto temos o Pix no Brasil, outros países possuem uma experiência muito rudimentar de pagamentos eletrônicos. Nesse contexto, os criptoativos competem com os projetos de moedas digitais de bancos centrais, ao facilitar pagamentos, ainda que com uma volumetria muito precária.

Quarto, a visibilidade e automação dos fluxos de pagamento pode ajudar a diminuir custos de transação para certas relações, especialmente contratos de distribuição. Transformar royalties em tokens, automatizar pagamentos por meio de instruções em smart contracts e permitir a rastreabilidade de transações pode facilitar a conciliação em diversos contratos, reduzindo a assimetria de informação entre as partes e simplificando as trocas de valores entre pessoas e organizações.

Por fim, a tokenização permite o fracionamento de ativos, pela emissão de milhares ou milhões de unidades referentes a um ativo com valor maior, o que poderia diminuir o valor mínimo de investimento e, com isso, democratizar o acesso ao mercado. Porém, penso que essa não é uma vantagem específica da tokenização. Quando há emissão de um título com valor nominal, esse é arbitrário, assim como a quantidade de títulos.

É comum que a quantidade e cotação dos criptoativos permitam que um altíssimo fracionamento resulte em variações ínfimas em valor absoluto e verdadeiros saltos astronômicos em valor relativo. Isso cria a ilusão de que o investidor não está perdendo nada (afinal são milionésimos de alguma coisa), o que é muito perigoso, à semelhança da cotação de ações e opções em centavos. Talvez essa opção seja mais um defeito do que uma vantagem, embora, diante de um mercado global, as discrepâncias na paridade do poder de compra justifiquem espaço para alguma acomodação de frações nas cotações para diminuir o ticket mínimo para negociar.

O interesse em torno dos criptoativos aumentou em razão da possibilidade de sua utilização para captação de recursos em escala global, financiando projetos com maior facilidade e menos encargos regulatórios e, ao mesmo tempo, pela popularidade da sua negociação, com fortes variações nos preços.

Infelizmente, a má conduta de certos participantes do mercado materializou diversos riscos ao patrimônio dos investidores, com o desaparecimento de empresas após a captação de recursos (golpe conhecido como “puxada de tapete” – rug pull), pirâmides e manipulações de preços (convocando pessoas a comprarem para, depois, os preços desabarem pela falta de novos entrantes). Assim, as vantagens da tecnologia foram ofuscadas pela prática de atos ilícitos, levando as autoridades a questionar se a regulação desse setor deveria ser equiparável à regulação financeira ou, então, à regulação de meros cassinos.

Com as reflexões trazidas nesse texto, espero ter contribuído para a compreensão dos criptoativos e, especialmente das tecnologias de registro distribuído como dignas de pesquisa acadêmica, experimentos e alternativas para o futuro do mercado financeiro, sem que seu caráter tido como “revolucionário” seja apresentado como se isso fosse óbvio.

 

*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre
(FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde
também atuou como assessor do Colegiado.

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