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Veste Casaco, Tira casaco: A Saga da segregação patrimonial na Regulamentação Brasileira do Mercado de Criptoativos.

No último dia 27, foi aprovada pelo plenário da Câmara dos Deputados a tramitação em regime de urgência do Projeto de lei (PL) 4932/2023, que propõe alterações à recém-chegada Lei nº 14.478/2022, com destaque para a exigência de implementação de segregação patrimonial por parte das prestadoras de serviços de ativos virtuais.

Embora o PL 4932/2023 tenha sido apresentado em 10 de outubro de 2023, a discussão acerca da segregação patrimonial remonta a outros tempos, com destaque para a tramitação do então PL 4401/2021, que deu origem à referida Lei.

De autoria do Deputado Federal Áureo Ribeiro (SOLIDARIEDADE/RJ), o PL 4401/2021, apósaprovado pela Câmara, foi submetido ao crivo do Senado Federal, que propôs algumas emendas ao texto original, dentre elas a inclusão de um novo artigo, que previa justamente a obrigatoriedade de segregação patrimonial por parte das Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (VASPs).

Contudo, ao retornar à Câmara, a sugestão foi recusada e retirada pelo então Relator do Projeto, o Deputado Expedito Netto (PSD/RO), motivo pelo qual essa previsão não constou na redação final da Lei nº 14.478/2022.

Vale ressaltar que, apesar de a segregação patrimonial não ter integrado o texto da Lei, a discussão reverberando no Legislativo. Prova disso é que recentemente o PL 4932/2023 teve sua tramitação aprovada em regime de urgência pelo Plenário da Câmara dos Deputados.

O Projeto de Lei propõe, sobremaneira, a inclusão de 04 dispositivos ao artigo 7º da Lei nº 14.478/2022 que, sendo assim aprovado, passaria a contar com os artigos, 7º-A, 7º-B, 7º-C e 7ºD.

Considerando-se o tema aqui discutido, interessa-nos os sugeridos artigos 7º-B e 7º-C. Vejamos: Art. 7º-B Qualquer transferência de moeda nacional ou estrangeira entre usuário e prestador de serviços de ativos virtuais, ou entre este e aquele, deve ser feita por meio de conta mantida em nome do usuário em instituição autorizada a operar no País pelo Banco Central do Brasil.

Art. 7º-C Os ativos virtuais e demais bens e direitos mantidos por cada usuário junto a prestador de serviços de ativos virtuais:

I – constituem patrimônio separado, que não se confunde com o do prestador de serviços de ativos virtuais;


II – não respondem direta ou indiretamente por nenhuma obrigação do prestador de serviço de ativos virtuais nem podem ser objeto de arresto, sequestro, busca e apreensão ou qualquer outro ato de constrição judicial em função de débitos de responsabilidade do prestador de serviço de ativos virtuais;


III – não compõem o ativo do prestador de serviço de ativos virtuais, para efeito de falência ou liquidação judicial ou extrajudicial; e


IV – não podem ser dados em garantia de débitos assumidos pelo prestador de serviço de ativos virtuais.

No que tange ao primeiro dispositivo, a preocupação do legislador é em relação ao modelo adotado por algumas instituições de pagamento, denominado ‘’conta-ônibus’’, por meio do qual os recursos dos usuários são todos depositados em uma única conta, seja de depósito ou de pagamento.

Isso porque as contas-ônibus acabam por dificultar a gestão e fiscalização das operações dos usuários e instituições, o que consequentemente acaba por majorar o risco de práticas ilícitas como a lavagem de dinheiro.

Assim, a inclusão do dispositivo propõe que todas as transferências entre usuário e prestadorade serviços de ativos virtuais, seja em moeda nacional ou estrangeira, sejam realizadas por intermédio de conta de titularidade do usuário, mantida em instituição financeira autorizada e regulada pelo Banco Central do Brasil.

Impende salientar que, embora não integrem o Sistema Financeiro Nacional, as instituições de pagamento são reguladas e fiscalizadas pelo BACEN, de acordo com diretrizes estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Acerca do sugerido artigo 7º-C, cabe destacar as seguintes disposições:


• Os ativos dos usuários não integrarão o patrimônio das prestadoras de serviços de ativos virtuais;


• Os ativos dos usuários não poderão ser considerados para efeitos de falência ou recuperação judicial, e/ou extrajudicial das empresas;


• Os ativos dos usuários não responderão por nenhuma obrigação ou débito assumido pelas prestadoras de serviço de ativos virtuais, e por isso não devem ser objeto de constrições judiciais decorrentes de eventuais débitos contraídos pelas empresas;


• Os ativos dos usuários não podem ser oferecidos como garantia em obrigações assumidas pela prestadora de serviços de ativos virtuais.

Interessante que essas disposições muito se assemelham às previsões contidas em regulamentações de outros países, a exemplo da Circular publicada pela Hong Kong Monetary Autority em 20 de fevereiro, que trata das diretrizes a serem observadas por instituições autorizadas a operar no país prestando serviços de custódia de ativos virtuais.

No título sobre Segregação dos Ativos Virtuais do Cliente (Segregation of client digital assets), há previsão de que as instituições autorizadas não podem transferir nenhum direito, interesse  ou propriedade relativa aos ativos digitais dos clientes, em razão de empréstimo ou penhora, nem criar nenhum embaraço ou constrição sobre eles, exceto em 03 situações

1) Caso o cliente possua débitos com a empresa relativos a transações, taxas ou outras obrigações;

2) Se for obtido consentimento prévio do cliente, por escrito, nesse sentido; e

3) Quando for exigido por lei.

Diferentemente da norma publicada pela Hong Kong Monetary Autority, não há previsão expressa de exceções no PL 4932/2023. Não obstante, o inciso II do proposto art. 7º-C dispõe que os ativos digitais dos usuários ‘’não respondem direta ou indiretamente por nenhuma obrigação do prestador de serviço de ativos virtuais nem podem ser objeto de arresto, sequestro, busca e apreensão ou qualquer outro ato de constrição judicial em função de débitos de responsabilidade do prestador de serviço de ativos virtuais;’’

Assim, infere-se logicamente que os ativos virtuais do cliente podem plenamente responder por débitos contraídos pelo próprio usuário, inclusive junto à plataforma, por exemplo.

Do ponto de vista prático, não restam dúvidas de que a segregação patrimonial é um importante instrumento na promoção de maior segurança aos investidores e, em verdade, o ideal é que já tivesse sido prevista na recentíssima Lei nº 14.478/2022, que passou a vigorar em 20 de junho de 2023.

A crítica, porém, fica por conta da ineficiência que rotineiramente presenciamos em nosso processo legislativo. Enquanto alguns projetos ficam ‘’engavetados’’ por anos e não avançam, outros são aprovados sem a devida deliberação que a complexidade da matéria demanda.

Essa dinâmica acaba por dificultar o trabalho dos órgãosreguladores do mercado, como é o caso do Banco Central, que já vinha trabalhando em atos normativos para definir os critérios e diretrizes a serem seguidos pelas prestadoras de serviços de ativos virtuais para obtenção de autorização de funcionamento, de acordo com a competência que lhe foi atribuída por meio do Decreto nº 11563/2023.

Agora, caso o PL 4932/2023 seja aprovado e convertido em Lei, o BACEN provavelmente terá que dar alguns passos atrás no trabalho que está em desenvolvimento com vias a se adequar à nova Lei, o que postergaria a publicação das tão esperadas Resoluções.

Para sanar o problema, é fundamental que o Congresso Nacional estimule e convide especialistas, empresas, instituições e órgãos reguladores a participarem mais ativamente das deliberações, de modo a propiciar a criação de normas que atendam, tanto quanto possível, guardadas as devidas proporcionalidades e limites constitucionais, os interesses de todos os envolvidos.

Cabe ressaltar, de forma elogiosa, a recente publicação do edital para a Consulta Pública 97/2023, por meio da qual o BACEN oportunizou que os players e demais interessados pudessem dar sua contribuição em prol do esclarecimento de questões suscitadas pelo órgão em relação à regulamentação do mercado de criptoativos. O CriptoJur, inclusive, encaminhou suas sugestões.

Importante observar que um ponto comum a boa parte das contribuições encaminhadas através da Consulta foi acerca da necessidade de que seja concedido prazo superior os seis meses previstos no art. 9º da Lei 14.478/2022 para que as prestadoras de serviços de ativos virtuais possam se adequar aos critérios que serão definidos em Resoluções a serem publicadas pelo órgão.

Dado o novo movimento legislativo derivado do PL 4932/2023, que traz consigo incertezas e certo grau de instabilidade, a necessidade de concessão de um prazo maior para adequação fica ainda mais evidente.

Por fim, resta-nos aguardar a tramitação do referido Projeto de Lei, na esperança de que tenhamos uma regulamentação clara, eficiente, protetiva aos investidores e estimulante às empresas, a fim de que o mercado de criptoativos possa evoluir de forma sustentável e os benefícios gerados pela tecnologia aproveitem a todos da melhor maneira.
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*Antídio Souza é advogado especializado na estruturação e adequação jurídica de negócios do mercado de criptoativos, e em Direito Contratual. É certificado em Blockchain and Business pelo Blockchain Research Institute de Toronto/Canadá, membro da Crypto Valley Association de Zug/Suiça, e da Comissão de Blockchain e Ativos Virtuais das 36ª Subseção da OAB/SP. É também fundador do portal CriptoJur (criptojur.com). Instagram: @antidiosouza.

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