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A relação pouco óbvia entre IA e blockchain

 

Isac Costa*

As últimas semanas foram marcadas por novidades interessantes no mundo da inteligência artificial, algumas delas com impacto relevante no mercado financeiro. 

Finalmente, o Bard, criado pelo Google para rivalizar com o ChatGPT está disponível no Brasil. Convido você a testar, por exemplo, o comando “Quais foram as principais perguntas e temas discutidos na live ‘O Real Digital’, disponível em https://www.youtube.com/live/JQ1ry6MHCtk?feature=share?”

Em seguida, experimente pedir o seguinte “Aja como um estagiário que ficou a cargo de marcar os momentos mais relevantes dessa live. Indique as marcas de tempo nas quais as principais perguntas e respostas são apresentadas”. O resultado é bem interessante. Caso você utilize a versão paga do ChatGPT (que agora já está disponível para Android), poderá realizar o mesmo teste.

Também foi divulgado o uso interno, pelos funcionários da Apple, de um sistema de processamento de linguagem natural apelidado de “Apple GPT”, cujo lançamento para o público em geral ainda não foi anunciado.

Assim, os holofotes (e investimentos) são deslocados para as promessas do uso da IA generativa para revolucionar o modo como pesquisamos, consumimos e compartilhamos informação. Os desafios ainda estão sendo mapeados, mas, após a explosão de popularidade do ChatGPT, nossa rotina de trabalho não será mais a mesma (algo parecido como querer um mundo sem internet após o surgimento desta).

Ainda merece destaque a assistente LuzIA. Basta que você adicione o número +55 11 97255- 3036 no seu WhatsApp ou Telegram e envie áudios para serem transcritos (eu ouvi um “AMÉM”?), perguntas a serem respondidas, textos a serem traduzidos ou resumidos ou até mesmo pedidos de criação de imagens com base em descrições textuais. Obviamente, a ferramenta é gratuita e suscita diversas preocupações sobre o uso das informações fornecidas.

Um evento importante que merece nossa atenção foi o lançamento do projeto Worldcoin e seu respectivo ativo virtual pela Tools for Humanity (TFH), companhia que tem como co-fundador Sam Altman, o CEO da OpenAI, empresa por trás do ChatGPT.

A iniciativa já recebeu cerca de US$250 milhões em investimentos, incluindo os fundos de venture capital Andreessen Horowitz (a16z) e Khosla Ventures. A TFH foi constituída em Delaware e tem sede em São Francisco e Berlim. Por sua vez, a governança do projeto é de responsabilidade da WorldCoin Foundation, entidade sem fins lucrativos constituída em Cayman Islands, a qual é administrada por uma organização autônoma descentralizada (decentralized autonomous organization – DAO). A Worldcoin Foundation também é detentora de todos os direitos de propriedade intelectual do projeto.

O token WLD foi lançado a US$1,70 em 24/7 e chegou a ser cotado a US$3,31 (valorização de 94%) para, em seguida, recuar a US$1,91 (queda de 42% com relação à máxima), com uma capitalização de mercado que ultrapassou rapidamente US$200 milhões.

O objetivo do projeto é criar um sistema global de identidade para uso em transações financeiras, com o potencial de “distinguir humanos de robôs na internet”, “viabilizar processos democráticos em todo o mundo” e, ao mesmo tempo, assegurar a privacidade dos usuários, conforme enuncia a carta assinada pelos fundadores do projeto.

A atribuição de identidade depende do acesso a um dispositivo denominado Orb, que escaneia a íris do globo ocular das pessoas para criar uma “prova da personalidade” humana. Desse modo, você poderá provar que é um ser humano sem ter que revelar a sua identidade.

De acordo com o whitepaper do projeto, o token WLD tem como finalidade criar incentivos econômicos para que os participantes da rede a ajudem a crescer. Dentre os casos de uso sugeridos, encontramos os pagamentos internacionais instantâneos (nada de novo com relação à visão do bitcoin), com ênfase na possibilidade de angariar fundos em escala global – o que, com certeza, preocupa reguladores do mercado de capitais.

A prova de personalidade pode, ainda, servir para certificar que contas de redes sociais são de seres humanos e não de robôs, além de permitir a votação eletrônica em determinados ambientes. A identificação biométrica também poderia beneficiar programas assistenciais dos governos, prevenindo fraudes – o whitepaper enfatiza o horizonte de uma renda básica universal (universal basic income – UBI) viabilizada por meio da inteligência artificial.

Vale mencionar a enumeração preliminar de riscos do projeto: comprometimento do dispositivo de biometria (Orb), furto de identidade, venda de identidade e fraude no processo de verificação.

A despeito das preocupações sobre segurança da informação e proteção de dados pessoais, é importante refletir sobre a necessidade de um cadastro confiável para agentes econômicos e a identificação dos beneficiários finais de transações. No Brasil, por exemplo, cada corretora mantém seu cadastro próprio com informações sobre endereço, patrimônio, renda, indicação de pessoa politicamente exposta e outros dados, o que gera transtornos operacionais relevantes e prejudica a supervisão do mercado para prevenir lavagem de dinheiro e outros ilícitos.

Adicionalmente, não existe um sistema unificado que associe a uma pessoa todos os bens móveis e imóveis por ela detidos – o Poder Judiciário teve que consolidar bases fragmentadas de dados para criar o Sniper e todos contamos com o Sisbajud para atos de constrição patrimonial. O processo de inventário pode se tornar um pesadelo não somente pelas disputas dos sucessores, mas também pela insuficiência ou imprecisão da qualidade dos dados sobre os bens do de cujus.

Se vivemos na economia da informação, infelizmente parece ainda não existir um esforço convergente para a racionalização e sistematização dos dados sobre a propriedade de bens e a identificação de partes em transações.

Com base na tecnologia blockchain, o projeto Worldcoin apresenta uma visão muito ambiciosa, pressupondo que a identificação na titularidade de bens e nas transações pode ser realizada de modo supranacional e garantida por uma entidade não governamental. Não teria como ser diferente, afinal essa é a premissa – e vantagem – essencial da descentralização: a criação de uma rede de troca de informações que prescinda de uma autoridade central para garantir a integridade dos dados e, por essa razão, tenha poder sobre os usuários.

A relação entre inteligência artificial e blockchain não é óbvia. Pelo fato de ambos os temas serem marcados por euforia e irracionalidade, vários projetos que supostamente conciliam essas tecnologias têm sido anunciados, com valorizações expressivas de seus tokens. Resta a nós observar (ou talvez torcer) para que o projeto Worldcoin tenha algum êxito se não se revele como tragédia ou farsa.

*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado. 

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