Isac Costa*
Kyle Davis e Su Zhu criaram o fundo Three Arrows Capital em 2012 com um investimento inicial de USD1,2 milhão e atingiram, em alguns anos, USD4 bilhões, antes de quebrar no ano passado em meio ao inverno cripto. Em uma apresentação recente, eles aparecem como fundadores de um novo projeto: GTX (porque “G” vem depois de “F” e a FTX é passado), um mercado para negociação de tokens representativos de créditos contra empresas cripto falidas.
Há milhares de pessoas na fila para receber uma fração dos valores depositados em empresas como Celsius, BockFi, FTX etc., que irão gastar com advogados e esperar uma eternidade para, com sorte, reaver algum valor. Por que não providenciar, junto a essas empresas insolventes, a emissão de tokens representativos desses direitos, a fim de que possam ser negociados em um mercado secundário? As empresas ganham porque conseguem quitar parte de suas dívidas a valores mais baixos, os investidores ganham porque recebem parte do crédito antecipadamente e especuladores podem fomentar esse mercado, fazendo “pó” virar “ouro” com alguma sorte (e barulho). E, claro, a GTX ganha suas comissões por criar esse mercado.
Seria essa uma ideia genial ou imoral? O apetite por risco e volatilidade e a pressa em recuperar prejuízos pode ser uma combinação explosiva, arrastando para um abismo ainda mais profundo as vítimas do inverno cripto. A memória curta e o medo de ficar de fora de uma retomada dos tempos gloriosos pode causar um estrago maior no patrimônio de muitos, do que aquele observado em 2022.
A valorização expressiva de muitos criptoativos em janeiro de 2023 fez nascer a esperança de uma “primavera cripto”. Embora aqueles que compraram bitcoin na casa de USD40 a 60 mil ainda estejam amargando perdas de mais de 50%, os entusiastas de longo prazo (HODLers no dialeto cripto) colhem os frutos da resistência ao medo, incerteza e dúvida (FUD, no jargão próprio). O pêndulo se move na guerra de narrativas do “Eu avisei!”. Se, durante o inverno cripto, as vozes mais altas eram de economistas tradicionais e reguladores alertando sobre a ausência de fundamentos e indícios de bolha, agora o discurso vai, aos poucos, de volta à ideia de revolução no futuro das finanças.
Aqueles que se encontram em meio ao fogo cruzado de discursos e cotações não sabem se realizam suas perdas (agora menores) ou se fazem “preço médio para baixo”, aumentando sua aposta em criptoativos, criando um atalho para o break-even de sua posição. Nessas horas, a depender da dose, a esperança pode ofuscar a racionalidade e decisões erradas podem amplificar prejuízos.
Ao observar as cotações dos criptoativos, tenha em mente que a negociação em exchanges centralizadas nunca foi seu propósito original. Os dados sobre preços, quantidades e volumes financeiros são fornecidos unilateralmente por empresas que não se sujeitam a nenhum tipo de auditoria e, embora as transações registradas em blockchain sejam transparentes, grande parte das operações ocorre em sistemas próprios dessas empresas, fora do registro distribuído e imutável.
Se, no mercado tradicional, é possível manipular o livro de ofertas por meio da inserção de ordens em grandes quantidades (spoofing) ou inúmeras camadas de ordens (layering) para dar a impressão de falsa liquidez, com muito mais razão a falta de transparência no processo de formação de preços em diversas exchanges é preocupante.
A vontade de recuperar as perdas, a presença de incentivos perniciosos e a inexistência de mecanismos de repressão a fraudes pode levar a manipulações que gerem movimentos violentos nos preços meticulosamente orquestrados. Convido você a navegar pelas inúmeras notícias desde meados de dezembro que procuram justificar uma recuperação no mercado cripto. Dificilmente irá encontrar um fundamento robusto ou, ao menos, um conjunto de dados convergentes para justificar uma alta de quase 50% nas cotações dos principais criptoativos.
Já foi dito em diversos espaços que o volume reportado por muitas exchanges é tão fictício quanto as teses de investimento da maioria dos criptoativos. Convém investigar se os epicentros de grandes ondas de volatilidade também não foram meras operações simuladas, entre os mesmos investidores em carteiras diferentes ou outros esquemas mais elaborados – em 2011, um esquema dessa natureza fez com que as ações da Mundial S/A subissem 3.300% em três meses (para cair quase 90% em três dias, quando a bolha estourou).
Infelizmente, os participantes do mercado têm memória seletiva e os protagonistas de grandes colapsos podem voltar à cena, capitaneando reencarnações de projetos fraudulentos ou, com algum eufemismo, excessivamente “arrojados”. Assim, Kyle Davis e Su Zhu podem aparecer em público, de cara lavada, e, em vez de serem tomados como estelionatários irresponsáveis, tornam-se “empreendedores seriais” em um mundo incrível (trocadilho intencional) onde o fracasso é tido como natural e aceitável. Afinal, startups são um negócio de risco, com modelos inovadores e sujeitos a muitas incertezas – o produto mínimo viável faz com que a regra seja o discurso minimamente crível para vaporizar capital de risco.
Enquanto a atenção de investidores se voltar a quem é capaz de captar recursos com slides coloridos em vez de criar produtos e serviços que gerem valor e buscam a excelência (e não protótipos rudimentares e obsessão por métricas ocas como NPS), enquanto as cotações dos ativos ofuscarem os fundamentos das empresas, seremos “caçadores de borboletas” que acreditam em unicórnios e outras baboseiras corporativas, ou, em termos mais simples, presas fáceis. Saltitando na floresta de chavões como “disrupção”, “4.0” e congêneres, é questão de tempo sermos (novamente) iludidos.
Espero que a primavera cripto não “descongele” ameaças latentes que estavam hibernando e que as flores – é preciso dizer que falamos delas! – não sejam de plástico.
*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre(FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.
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