Conheça seu cliente – KYC-obrigação inútil ou estratégica

Conheça seu cliente – KYC: obrigação inútil ou estratégica?

Há uma tensão entre objetivos comerciais e regulação financeira quando tratamos do dever de coletar e manter atualizados os dados de clientes. Informações incompletas ou inconsistentes podem comprometer os processos e a integridade de uma instituição e prejudicar a fiscalização pelos reguladores e atuorreguladores. Sem a identificação de beneficiários finais, a prevenção à lavagem de dinheiro é seriamente comprometida, bem como a detecção de fraudes e a supervisão de mercado para reprimir insider trading e manipulação de preços.

De um lado, o processo de cadastro inicial (onboarding) deve ter o mínimo de fricção, permitindo a captura eficaz do usuário que chegou até a página de uma oferta ou de cadastro prévio. De outro lado, as regras vigentes – Circular BCB n° 3.978/2020 e Resolução CVM nº 50/2021 – preconizam um conjunto mínimo de informações que, à primeira vista, são incompatíveis com as diretrizes de experiência de usuário ou com a ambição de uma fintech ou empresa digital em alcançar uma escala de dezenas de milhões de clientes.

Some-se a este quadro a experiência fragmentada de cada usuário: temos relacionamentos com diferentes bancos, corretoras, fintechs, seguradoras etc. e, para cada uma delas, faz um cadastro diferente. Ainda, algumas instituições mantêm múltiplos sistemas internos de cadastro, cuja conciliação é um sério problema operacional.

A ausência de um “cadastro consolidado” para as instituições que integram o Sistema Financeiro Nacional, bem como a inexistência de um registro consolidado (ou compartilhado) de bens emperram as engrenagens do sistema econômico, comprometendo processos como gestão de garantias, execução de dívidas, realização de auditorias legais e inventários, dentre outros. Mesmo com tecnologia disponível para eliminar ou amenizar esta ineficiência, seguimos com a redundância de dados e de obrigações relativas ao cadastro de clientes.

Cadastro e risco

Algumas empresas têm oferecido serviços de checagem de dados a partir de bases públicas, o que mitiga alguns riscos e atenua discrepâncias. Para muitas instituições, a contratação destes serviços é mais do que suficiente para assegurar o cumprimento das regras de “conheça seu cliente”, comumente designadas como KYC, acrônimo para “know your client”.

Todavia, o cadastro é um processo dinâmico e está intimamente associado à análise do risco representado por cada cliente.

Por exemplo, o fato de uma conta ser recém-aberta, com valores de patrimônio e renda pouco materiais e sem nenhum alerta em checagens de dados com terceiros pode sugerir que o respectivo cadastro só precisará ser alterado daqui a alguns anos. Porém, se várias contas semelhantes são abertas ao mesmo tempo e com dados furtados ou mesmo comprados de pessoas vulneráveis, sua atividade ficará fora do radar. Ou, então, a instituição demorará a perceber alguma atipicidade nas transações associadas a essas contas (pense no titular de contas de pagamento que usa a maquininha ou Pix em crimes ou “laranjas” que manipulam cotações de papéis pouco líquidos). Quem já teve os dados furtados e descobriu que tinha uma conta em um banco digital do qual nunca ouviu falar talvez entenda melhor o problema.

Igualmente, as instituições poderiam (ou deveriam) solicitar a declaração de imposto de renda para respaldar a declaração de situação financeira e patrimonial e outros documentos que comprovem dados considerados sensíveis para sua política de risco. Afinal, a movimentação de valores incompatíveis com patrimônio e renda é um dos alertas mais eloquentes de que algo pode estar errado.

É necessário, ainda, checar continuamente se aquela pessoa é politicamente exposta ou se está em alguma lista restritiva nacional ou internacional. Sobre o tema, o professor Luiz Henrique Lobo elaborou um texto extremamente útil.

Na série “Na Rota do Dinheiro Sujo” da Netflix, há um episódio sobre o banco Wells Fargo e como o número de contas abertas foi inflacionado para criar a ilusão de crescimento. Nota-se a inépcia (ou inércia) do compliance do banco para flexibilizar o processo de cadastro em prol de objetivos escusos. As consequências foram catastróficas.

Cadastro e personalização

Para além de sua relação com o risco, o processo de conhecimento do cliente é fundamental para a oferta personalizada de produtos e serviços. Na era da digitalização e da inteligência artificial, o discurso dominante é o de que a tecnologia pode oferecer a cada pessoa o produto que lhe seja mais adequado. Por isso, é espantoso e contraditório constatar que a obtenção de dados fidedignos e completos de um cliente – e sua validação e atualização – sejam considerados como algo negativo por parte relevante do mercado (se não no discurso, assim é relevado na prática).

Especialmente no mercado financeiro, além do dever de KYC, é preciso verificar a compatibilidade do perfil de risco do cliente a determinado produto ou serviço, o chamado dever de suitability. A oferta de derivativos, produtos estruturados ou de títulos de longo prazo com baixa liquidez pode não ser adequada aos objetivos de investimentos de um indivíduo, mas, ainda assim, são ofertados incisivamente, a despeito das peculiaridades de cada cliente.

Se, de um lado, a máxima transparência para rastrear transações financeiras contribui para o aumento do poder de vigilância do Estado (e o aumento do risco de intervenção indevida), de outro lado, a opacidade facilita o ingresso de recursos provenientes de atos ilícitos que criam distorções concorrenciais e a realização de operações que comprometem a credibilidade do mercado financeiro.

Por isso, precisamos decidir se continuaremos a aplaudir os números vertiginosos de crescimento com base em aumento de novas contas e a facilidade de abri-las enquanto, ao mesmo tempo, participantes regulados funcionam como avenidas para a circulação de recursos contaminados e perpetração de fraudes.

Flexibilizar a regulação em prol da liberdade econômica é um imperativo até que ocorra uma grave crise, que provavelmente gerará reformas e novas normas, que serão desafiadas e assim seguirá o ciclo neurótico da regulação financeira.

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*Isac Costa é advogado, professor do Insper e da LegalBlocks. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.

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