O mercado tem memória curta e a academia tem o papel de ajudar a consolidar as lições aprendidas e mantê-las vivas em nossa memória.
Em 2022, a Thomson Reuters publicou dossiês sobre uma exchange ter facilitado transações com recursos de origem ilícita e se blindar contra investidas regulatórias nos Estados Unidos e no Reino Unido. As respostas (1, 2 e 3) desta exchange foram enfáticas: a imprensa gera FUD (fear, unceetainty and doubt) para atacar a reputação do setor cripto e favorecer seus oponentes, em particular bancos e instituições reguladas e Estados sedentos por impostos.
Esta exchange contratou profissionais experientes para formar um esquadrão de prevenção a fraudes e lavagem de dinheiro em seus sistemas e cooperar com autoridades em investigações. Ainda, contratou nomes de peso dentre ex-presidentes e diretores de reguladores financeiros de diversos países para lhe emprestar legitimidade, formando em um “conselho global”. E empresa negou todas as acusações à época e enfatizou seu compromisso com compliance e normas contra crimes financeiros.
No Brasil, seu CEO, enquanto posava ao lado de políticos locais, afirmou que “é muito difícil lavar dinheiro com criptomoedas” em linha com publicações de sua empresa sobre o “mito da lavagem com cripto”. À época, mais de quinze países haviam iniciado algum tipo de enforcement contra a exchange, com alguns deles proibindo sua atuação, com base nas leis vigentes do mercado de capitais e do direito penal.
No Brasil, as autoridades permaneceram inertes, alegando não terem competência para regular a matéria e a ausência de regulação específica.
Há poucos meses, tudo mudou. O mesmo CEO teve de deixar seu cargo e hoje aguarda uma sentença de prisão nos Estados Unidos por ter guiado sua exchange a contornar a regulação local, criando uma subsidiária de fachada e facilitando…. lavagem de dinheiro.
Após fechar um acordo de mais de 4 bilhões de dólares, admitindo ter participado da prática de lavagem de dinheiro, burlar sanções internacionais e realizar câmbio sem autorização, a exchange deixou os Estados Unidos e hoje tentar “virar a página“.
No Brasil, no relatório final da CPI das pirâmides financeiras, essa exchange foi apontada como a grande vilã, com recomendações de atuação para a CVM,Receita Federal, Bacen e Polícia Federal.
A inércia dos reguladores brasileiros teve dois efeitos perversos.
Em primeiro lugar, a impressão de que não compensava agir em conformidade com as normas – afinal, estaríamos diante de um novo setor que precisaria de normas específicas, ignorando o direito vigente. Dois anos depois da tumultuada aprovação da Lei 14.478/2022, ainda não temos regras claras e a insegurança jurídica trava investimentos no setor.
Em segundo lugar, uma enorme distorção concorrencial. Aqui temos um ponto relativo a qual bem jurídico é tutelado pela proibição da lavagem de dinheiro – para os anarcocapitalistas, é um “crime sem vítima “. Ao flexibilizar controles e favorecer lavagem de capitais, financiamento do terrorismo, sonegação fiscal e evasão de divisas, uma exchange pode “anabolizar” sua receita, atraindo pessoas que desejam agir fora do radar.
As exchange brasileiras que decidiram investir em compliance perderam clientes e liquidez e foram acusadas de serem ineficientes e caras, clamando por uma regulação protecionista para lhes favorecer.
Até hoje, esses efeitos são sentidos e uma luz no fim do túnel é o fato de que a busca por serviços diversos da corretagem tornou o Brasil um dos países com a maior diversidade de operações de tokenização de ativos, fazendo com que criptoativos sejam mais do que meras fichas de cassino.
Não podemos esquecer os eventos aqui descritos. O embate entre regulação e inovação é uma falácia, pois um mercado não se desenvolve sem regras claras. Em uma terra sem lei, vale a lei do mais forte. Se a intervenção estatal cerceia liberdades e gera tributos e custos de observância, cabe a nós ponderarmos os efeitos da ausência da regulação para concluir se esses encargos são um “peso morto” ou o preço para alcançar um mínimo de segurança jurídica.
“Move fast and break things” ainda é o lema de muitas startups, em particular no universo cripto. A ideia de assumir riscos e quebrar regras é aplaudida em nome da inovação. Quem escolhe trabalhar com compliance e gestão de riscos precisa se acostumar com a maldição do “eu avisei”. Alertas são ignorados, controles são rejeitados, afinal tudo está funcionando… até que deixe de funcionar. E, no caos, quando o Estado bate à porta e uma crise é instaurada, não adianta dizer “eu avisei”. Não raro, o compliance é arrastado como culpado ou ineficaz.
Em regra, valorizamos muito mais quem resolve um problema com efeitos concretos do que quem ajuda a prevenir sua ocorrência.
Hoje, criptomania e criptoeconomia surgem como duas faces do mesmo fenômeno. De um lado, preços ilusórios e anonimato facilitam a lavagem de dinheiro e pirâmides e, ainda, direcionam os holofotes para o setor.
Por outro lado, esse frisson atrai novas empresas e instituições reguladas, que criam produtos como ETFs e tokens de renda fixa, estimulando o Estado a criar regras. Então, o setor se desenvolve, a ponto de algumas vozes afirmarem que exchanges deveriam ser reguladas como casas de apostas, pois uma disciplina própria do mercado financeiro lhe emprestaria uma legitimidade indevida.
Enquanto isso, a maioria dos investidores não consegue separar o joio do trigo e as manchetes de pepecoin, dogecoin e outras shitcoins subindo mais de 100% em um mês continuam a atrair cliques.
Na ausência de regras claras, é difícil defender que compliance não é custo, mas sim investimento.
Espero que a academia e aqueles que ainda acreditem no ceticismo metódico e na pretensão a uma objetividade científica nos ajudem a ignorar a desinformação. Nenhuma punição irá compensar os efeitos nefastos à concorrência e à cultura de integridade causados por atores que se beneficiam indevidamente de atos ilícitos e, enquanto isso, são aplaudidos. Sua crucifixão posterior é apenas um espetáculo grotesco com pouco ou nenhum propósito.
*Isac Costa é advogado, professor do Ibmec, do Insper e da LegalBlocks. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.
Deixe seu comentário