Quem diria que a mesma tecnologia que tornou possível a criação de uma moeda totalmente descentralizada, distribuída e que não depende de nenhum ente centralizado um dia seria utilizada justamente por entes centralizados?
O mundo deu voltas e hoje a blockchain é objeto de estudo e até mesmo de desejo dos mais variados órgãos institucionais. Neste artigo buscaremos entender e aprofundar um pouco mais sobre como essa tecnologia tem sido utilizada pelo Banco Central brasileiro na criação do Real Digital, como funcionará a emissão e funcionalidades desse novo tipo de moeda e outros aspectos interessantes desta tecnologia que está sendo considerada por muitos um mecanismo que revolucionará o mercado financeiro.
Antes de adentrar aos aspectos práticos e tecnológicos do Real Digital e da blockchain, cumpre entender, mesmo que de maneira resumida, como funciona o Sistema de Pagamentos Brasileiro.
O Sistema de Pagamentos Brasileiro tem seu aprimoramento com o advento da Lei nº 10.214/2001, na qual dispõe sobre a atuação das câmaras e dos prestadores de serviços de compensação e de liquidação no âmbito do sistema de pagamentos.
A lei dispõe sobre a necessidade da existência de sistemas de compensação e liquidação de ordens eletrônicas de débito e crédito, operações com títulos e outros valores mobiliários, dentre outros temas.
O Sistema de Pagamentos Brasileiro fez com que fosse possível que houvesse transferências imediatas de dinheiro, de modo que os clientes do sistema bancário pudessem transacionar, transferir e encaminhar recursos de maneira quase que imediata para outras pessoas em qualquer lugar do país.
Unido ao Sistema de Pagamentos Brasileiro, temos o Sistema de Transferência de Reservas, que é o sistema responsável por não aceitação de saldos negativos nas contas de reservas bancárias. É dizer, portanto, que todas as instituições financeiras são obrigadas a manter um recolhimento compulsório que forme reservas de recursos para adimplir com suas obrigações perante seus clientes.
Além do próprio Banco Central gerir e manter tais reservas. Toda essa engrenagem entre instituições financeiras e o Banco Central, para além de outras entidades, comunicam-se através da Rede do Sistema Financeiro Nacional – RSFN. É nessa rede que as instituições financeiras se comunicam, as reservas financeiras são balanceadas, os bancos fazem transferências entre si e liquidam seus saldos.
A RSFN é uma rede amparada por uma tecnologia complexa e que permite que os dados circulem entre os seus participantes em tempo real. Toda essa dinâmica e rapidez do sistema financeiro brasileiro, que agora conta com o PIX como uma das principais ferramentas, só é possível porque temos um sistema com prevalência de moeda escritural. É dizer, portanto, que o saldo que é mostrado na sua conta bancária não necessariamente significa que você possui aquele valor em papel moeda depositado. O que
existe é apenas um saldo escritural de depósitos registrados nos livros dos bancos e que muda de acordo com as transações que são feitas.
Assim, compreendemos que diariamente não existe papel moeda circulando de contas para contas, de instituições para instituições à medida que transferências são feitas pelos usuários, mas sim uma grande quantidade de saldos escriturais e digitais que são alterados de forma imediata toda vez que uma ordem de transferência é solicitada.
Entender essa dinâmica é importante para compreendermos que nosso sistema financeiro em sua essência não é baseado em papel moeda e metálica, mas sim em sistemas de saldos e de créditos que tem como base uma tecnologia que é capaz de registrar uma enorme quantidade de dados de maneira imediata, com a segurança de manter esses registros.
Coincidentemente ou não a blockchain detém características muito semelhantes a essas. Cumpre diferenciar também o Pix do Real Digital. Enquanto o primeiro é uma ferramenta, um sistema de pagamentos digital criado para transacionar valores de forma digital e imediata, o segundo é a própria moeda, só que totalmente digital. Se no PIX temos papel moeda que é depositado em nossas contas e utilizamos da ferramenta para transacionar valores, no real digital temos a própria moeda estatal emitida de maneira digital.
Difere-se também o Real Digital do conceito de moeda eletrônica trazido pela Lei nº 12.865 de 2013. Nesta lei, entende-se por moeda eletrônica o recurso depositado em sistema eletrônico e passível de transação pelo usuário final. Ou seja, até então temos apenas a possibilidade de emissão de papel moeda e de moeda metálica pelo Banco Central, de modo que existem sistemas e ferramentas que tornam possível a transação eletrônica de valores. Com o Real Digital isso muda, o Banco Central passará a emitir moeda 100% digital.
E para possibilitar essa emissão, a tecnologia utilizada será a blockchain, uma vez que mesmo que retirada a característica da descentralização e distribuição total que são inerentes às blockchains públicas e não permissionadas, é possível preservar as características de segurança da informação, audibilidade, registros céleres de informações e de criptografia em blockchains privadas, podendo, inclusive, serem institucionais os nodes (nós) da blockchain. E é exatamente essa a utilização que vem sendo buscada pelo Real digital.
No caso, será utilizada a blockchain privada da empresa Hypeledger Besu, plataforma que vem sendo cotada também para ser a base do sistema de RG’s lastreados em blockchain.
Agora que já entendemos onde entra a tecnologia blockchain no Real digital, cumpre esclarecer como se dará a sua emissão, porque, diferentemente do que muitos acham, o Real Digital não chegará em nossas mãos, clientes de varejo, como o mesmo Real Digital emitido pelo Banco Central.
Para uma melhor compreensão, vamos dividir a emissão do Real digital em duas fases. Uma emissão primária realizada pelo próprio Banco Central direcionada às Instituições Financeiras cadastradas, que para um melhor entendimento será denominada Emissão Primária. E uma segunda emissão das Instituições Financeiras para o cliente final, no caso nós, que será denominada Emissão Secundária.
Na Emissão Primária, o Banco Central com a sua competência de emissão de moeda, emitirá o Real Digital. Esse Real Digital será encaminhado para as Instituições Financeiras que o utilizarão para liquidar, compensar e adimplir com suas obrigações internas, nada muito diferente do que já ocorre nos dias de hoje. Esse Real Digital de Emissão Primária se chama CBDC, Central Bank Digital Currency.
No entanto, quando esse Real Digital for emitido para nós, sociedade, ele não será o mesmo Real Digital que chegou à Instituição Financeira. Parece confuso, e realmente o entendimento não é dos mais fáceis, mas vamos tentar explicar melhor.
A Instituição Financeira pegará o Real Digital advindo da Emissão Primária (CBDC), e gerará um token representativo deste Real Digital, token este que manterá a proporção de um para um com o valor do real, e encaminhará esse token para o cliente final, sendo esta a Emissão Secundária.
Teremos assim um Real Digital de Emissão Primária (CBDC), e um Real Digital tokenizado de emissão secundária (Uma espécie de Stablecoin institucional). Segundo o material disponibilizado pelo Banco Central, o que ocorrerá na prática das transações do dia a dia será a seguinte: O Cliente A irá solicitar a transferência do seu real tokenizado para o Cliente B. Recebendo essa solicitação, o banco do Cliente A pegará o real tokenizado do cliente, e o queimará, pegará a CBDC que lastreava o token e encaminhará para
o banco do Cliente B. O banco do Cliente B, por sua vez, pegará essa CBDC e emitira o real digital tokenizado para o Cliente B, e é esse real digital tokenizado que figurará na conta do Cliente B.
Haverá também uma lógica própria para a emissão e compra de títulos públicos, mas não convém neste artigo esmiuçar tais detalhes. Das vantagens da blockchain se destacam a possibilidade de rastreio dos ativos que são emitidos nessa plataforma, a criação de contratos inteligentes que são capazes de automatizar relações, a segurança proporcionada pelos seus registros e a proteção dos dados criptografados.
Assim, todas as CBDC’s emitidas pelo Banco Central, bem como os Reais Digitais tokenizados poderão ser rastreados pelo Banco Central de maneira tranquila e sem maiores desgastes com sistemas de escrituração, custódia e registros, tudo isso em tempo real, e com a segurança da imutabilidade dos dados registrados em blockchain, dificultando ainda mais o ataque de hackers.
Vale ressaltar também a natureza de token ERC20 (tokens fungíveis) do Real Digital, fazendo com que seja possível a transferência de frações do Real Digital recebido pelas instituições autorizadas para tal.
A função que demonstra a “fracionalidade” é a move, onde a instituição permitida poderá colocar a quantidade que quiser em amount, movimentando determinada quantia do endereço from para o endereço to, vejamos:
Ao analisarmos os códigos e usando como referência as ABIs (Application Binary Interface) ou “Interface Binária de Aplicativo” fornecida pelo próprio BACEN no github do próprio piloto digital, vemos alguns outros pontos interessantes:
No código acima, temos regras de que somente endereços definidos pelo próprio BACEN poderão realizar interações específicas, como: emitir, mover, queimar e congelar o Real Digital, bem como endereços que poderão pausar o contrato, uma regra de segurança para que ninguém mais consiga interagir com determinadas funções.
Além do mais, com a possibilidade de programabilidade do Real Digital, justamente por sua base ser em blockchain, serão possíveis de serem criados contratos inteligentes que poderão automatizar rotinas.
As características e benefícios da blockchain para o real digital ainda aumentam se levarmos em consideração o que chamamos de economia tokenizada.
A economia tokenizada consiste na digitalização dos bens, ativos e valores que até então tinham que ser físicos e corpóreos, mas que agora poderão ser digitais, tendo a tecnologia blockchain como base e, por conta disso, se valendo dos seus benefícios. Podemos tokenizar tudo, títulos de crédito, valores mobiliários, imóveis, contratos, ações, o céu e a imaginação são o limite.
Imagine a seguinte situação:
Cliente A é um correntista do Banco X e possui uma conta vinculada ao Real Tokenizado. Ele autorizou o banco a utilizar seus Reais tokenizados para efetuar pagamentos relacionados a tributos e multas que estão associados a sua identificação fiscal e sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH).
O sistema tributário e o departamento de trânsito local estão integrados ao ecossistema do Real Digital, uma plataforma que utiliza a tecnologia blockchain para executar smart contracts e realizar transações de forma segura e transparente.
No início do mês, a Receita Federal notifica o Cliente A sobre os tributos a serem pagos, e o departamento de trânsito emite as multas vinculadas à sua CNH. O banco, por meio da autorização concedida previamente pelo cliente, acessa os dados relevantes do sistema Real Digital para obter os valores a serem pagos.
O banco, departamento de trânsito ou alguma startup podem já possuir um smart contract contendo as informações sobre os tributos e multas devidos pelo cliente. Esse contrato inteligente é programado para executar automaticamente os pagamentos na data de vencimento, utilizando os Reais tokenizados na conta do cliente.
Chegando a data de vencimento, o smart contract é acionado e os valores devidos são convertidos para a quantidade equivalente de Real Tokenizado, utilizando a taxa de câmbio atual. Os Reais tokenizados são então transferidos para as contas do órgão tributário e do departamento de trânsito, efetuando os pagamentos de forma automática.
Cliente A recebe notificações em tempo real em seu aplicativo do Banco X, confirmando que os pagamentos foram realizados com sucesso. Ele também pode consultar o histórico de transações e detalhes dos pagamentos executados pelo sistema Real Digital.
Essa automatização dos pagamentos proporciona ao cliente A maior comodidade e evita atrasos e possíveis penalidades por esquecimento ou atraso no pagamento dos tributos e multas. Além disso, o uso do Real Tokenizado garante a segurança e a rastreabilidade das transações, tornando todo o processo mais eficiente e transparente.
Pode ser possível também que Bancos firmem parcerias para criar pools dos seus reais digitais tokenizados e com isso oferecer novos produtos financeiros ao consumidor final, surgirão também novos modelos contratuais e de investimento. São muitas as possibilidades com a adoção da blockchain no sistema financeiro nacional. Um dos benefícios em vista, é a criação de novas startups que utilizem o sistema do Real Digital, trazendo inovações, melhorando a economia e facilitando a vida dos brasileiros.
No entanto, cumpre esclarecer que o Real Digital está em seu plano piloto em que 16 instituições foram selecionadas para testar programas, ferramentas e rotinas do Real Digital. Temos muitas etapas para serem cumpridas ainda e testes a serem validados.
Há muitos pontos que precisam ser melhor entendimentos, como por exemplo: Haverá compatibilidade com EVM’s públicas? Qual seria o nível de programabilidade para terceiros?Essa programabilidade ficará restrita às Instituições Financeiras? Como serão geridas as chaves privadas? Serão disponibilizados APIs para integração ao sistema? Será possível ter ativos sintéticos oriundos do Real Digital e habilitá-los em sistemas DEFI?
Todas essas perguntas serão elucidadas com o tempo, mas o fato é que o Banco Central dá mais um grande passo para a digitalização da economia, e a blockchain será protagonista nesse novo momento do sistema financeiro nacional.
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– Afonso Dalvi é desenvolvedor de smart contracts e advogado pós-graduado em Direito
Digital, fundador da Omnes Blockchain e professor em 3 MBAs sobre web3 e blockchain.
– Clelton Alcântara é advogado, especialista em tokenização, smart contracts e blockchain, pósgraduado em direito e gestão imobiliária, legal engineer da Omnes Blockchain, professor e
palestrante na área de direito e web3.
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