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O que está em jogo na aprovação de ETFs de cripto nos EUA

Isac Costa*

A caneta do regulador pode criar ou destruir mercados. Recentemente, Blackrock e Ark entraram na fila de pedidos de aprovação de ETFs[1] junto à Securities and Exchange Commision (SEC), regulador norte-americano do mercado de capitais. Nesta semana, um pedido formulado pela Grayscale, que já havia sido recusado pela SEC, foi apreciado por um tribunal nos Estados Unidos[2]. A decisão foi a de que o regulador não conseguiu justificar a razão pela qual, no passado, aprovou ETFs de contratos futuros de criptoativos negociados na Chicago Mercantile Exchange (CME) e, agora, recusou o pedido de ETFs de criptoativos no mercado à vista (spot), sem distinguir adequadamente os produtos em questão.

Diversas gestoras e investidores aguardam a reação da SEC, uma vez que a autorização poderá deflagrar um influxo de instituições financeiras tradicionais na criptoeconomia, seja por ofertarem esses fundos ou por terem mais segurança jurídica para terem exposição em criptoativos em suas carteiras.

Por meio desses ETFs, os investidores não precisam lidar com a complexidade de carteiras e chaves ou depositar seus recursos em exchanges não reguladas, correndo o risco de não conseguirem resgatá-los pela ausência de segregação patrimonial, como ocorreu no caso da FTX.

Trata-se de uma via interessante para mitigar riscos para os investidores, considerando a existência de prestadores de serviços regulados que poderão ser responsabilizados até certo ponto.

O principal risco considerado pela SEC é o fato de que criptoativos são negociados globalmente em ambientes que, em regra, não são mantidos por empresas reguladas. Portanto, as cotações estariam sujeitas à manipulação de preços em suas diversas formas (pump and dump, trash and cash, spoofing, layering etc.) e os investidores poderiam sofrer com distorções ou outros eventos geradores de variações abruptas nos preços.

No caso de ETFs de futuros, a aprovação pela SEC decorreu de um acordo com a CME para que esta se responsabilizasse pela supervisão da negociação dos contratos futuros, gerando, assim, uma camada adicional de proteção. Contudo, na hipótese de uma exposição direta a criptoativos no mercado à vista, não há uma entidade a quem possa ser atribuído o papel de gatekeeper para prevenir e reprimir abusos.

No Brasil, em março de 2021, a CVM autorizou o HASH11, primeiro ETF de cripto no país, gerido pela Hashdex, que se tornou um sucesso em termos de volume e número de cotistas. Posteriormente, foram criados dois ETFs com exposição direta a bitcoin, o QBTC11 da QR Asset e o BITH11 da Hashdex, além de dois ETFs de Ethereum (QETH11 e ETHE11, também da QR Asset e Hashdex, respectivamente).

Antes disso, a CVM já havia permitido, em 2018, a exposição de fundos brasileiros a cotas de fundos estrangeiros com exposição a criptoativos e, mais recentemente, foi além e autorizou a exposição direta em criptoativos na carteira de fundos, ainda que em percentual reduzido.

No debate entre flexibilizar ou endurecer regras entre reguladores e participantes de mercado, o argumento de liberdade econômica e controle de abusos no poder regulatório ganha destaque. Por outro lado, as autoridades e o público em geral poderão questionar quem será responsabilizado quando milhares (ou milhões) de investidores tiverem ETFs de criptoativos em suas carteiras e houver uma disrupção relevante como o Flash Crash de 2010[3] ou algum movimento desastrado ou intencional de uma “baleia” cripto[4].

Assim, a eventual aprovação de ETFs referenciados em índices contendo criptoativos diretamente (e não apenas derivativos) terá um impacto relevante no desenvolvimento desse mercado em um país cujo regulador vem tentando destruí-lo, pelo aumento da liquidez e criação de oportunidades para arbitradores de preços em escala global.

A decisão final depende de uma análise de impacto regulatório, isto é, de um juízo de riscoretorno sobre a liberação desse produto e o que pode acontecer nesse mercado. Diante da empreitada da SEC em erradicar criptoativos dos EUA, ser forçada a autorizar ETFs de criptoativos será um duro golpe e nos resta aguardar o próximo movimento nesse interessantíssimo xadrez regulatório.

[1] ETF é a sigla para exchange traded funds, fundos cujas cotas são negociadas em bolsa. No Brasil, o tema é disciplinado pela Instrução CVM nº 359/2002 e encontra-se em atualização, no bojo das reformas contidas nas Resoluções CVM nº 175/2022 e e 184/2023.

[2] USCA Case #22-1142, Grayscale Investments, LLC v. SEC.

[3] Por causas até hoje não claramente identificadas, em 6 de maio de 2010 houve um “terremoto” nos preços de índices e ativos em todo o mundo. Em poucos minutos, a queda das cotações chegou a vaporizar meio trilhão de dólares do mercado norte-americano. Após uma investigação de seis meses, os reguladores daquele país não conseguiram encontrar a origem do problema. Posteriormente, um investidor foi condenado por ter sido responsável pelo desenvolvimento de um algoritmo que teria deflagrado o evento. O livro Flash Boys, de Michael Lewis, discute o assunto e outros problemas associados à negociação em bolsa por meio de algoritmos.

[4] “Baleia” é a designação dada a carteiras que contêm saldos relevantes de determinados criptoativos. Diante da transparência das transações e dos saldos nas carteiras, é possível mapear esses atores, ainda que sua identidade não seja conhecida.

*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.

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