O presente texto apresenta uma consolidação das principais respostas dos participantes do mercado à Consulta Pública BCB nº 97/2023 sobre os mecanismos mais eficientes para a segregação dos ativos dos clientes em relação aos ativos dos prestadores de serviços de ativos virtuais (VASPs). A pergunta formulada pelo Banco Central foi a seguinte:
Uma das principais propostas é a adoção de contas individualizadas obrigatórias, onde diversos participantes do mercado sugerem a separação ao nível de conta, traçando paralelos com práticas estabelecidas no setor financeiro tradicional. A criação de contas individualizadas para os fundos dos clientes impediria a mistura com o capital operacional do VASP. No caso de moeda fiduciária, muitas fontes recomendam o uso de contas de pagamento individualizadas, como as já utilizadas por instituições de pagamento. Já para ativos virtuais, a proposta é o uso de carteiras segregadas, preferencialmente por cliente, sendo que algumas delas podem assumir a forma de contas de pagamento pré-pagas, que já contam com um arcabouço jurídico consolidado no Brasil, ou ainda contas de depósito à vista, que proporcionam uma clara separação dos fundos dos clientes, espelhando práticas bancárias tradicionais e facilitando a recuperação de ativos em caso de insolvência do VASP. Além disso, há a sugestão de contas registradas, inspiradas nas contas de corretagem, onde os fundos dos clientes são destinados a finalidades específicas de investimento, restringindo o uso desses recursos pelos VASPs.
Outra proposta discutida é a segregação robusta dos ativos tanto on-chain quanto off-chain. No âmbito on-chain, a separação envolve o uso de carteiras distintas para os ativos do VASP e uma carteira consolidada para os ativos de todos os clientes, o que fornece um registro visível e à prova de alterações diretamente no blockchain. Embora esse método seja considerado mais seguro, ele pode gerar custos operacionais mais elevados. Já na segregação off-chain, entre os clientes, os VASPs manteriam registros internos separados para monitorar minuciosamente as participações de cada cliente, mesmo que os ativos sejam consolidados em uma única carteira para fins de eficiência. Embora essa abordagem seja mais econômica, sua eficácia depende fortemente dos controles internos do VASP, não oferecendo o mesmo nível de transparência que a segregação on-chain.
Além das medidas de segregação, os participantes enfatizam a importância de transparência e de procedimentos operacionais robustos, acompanhados por controles internos eficientes. Isso inclui a segregação clara de funções, garantindo que nenhum indivíduo ou departamento tenha controle total sobre o processo de gestão de ativos, o que reduziria os riscos de acesso ou manipulação não autorizados. A manutenção de registros detalhados de todas as transações e movimentos de ativos dos clientes também é apontada como essencial, possibilitando uma conciliação precisa e facilitando auditorias. O uso de sistemas de prova de reservas, que permitem aos clientes verificar se o VASP possui reservas suficientes para cobrir suas obrigações, foi destacado como um importante avanço, assim como a realização obrigatória de auditorias periódicas por terceiros independentes para verificar a efetividade das práticas de segregação de ativos e dos controles internos dos VASPs. Outro ponto relevante é a realização de due diligence rigorosa sobre prestadores de serviços terceirizados, especialmente quando esses são custodiantes estrangeiros, como forma de mitigar riscos e garantir a conformidade com as regulamentações aplicáveis.
Muitos participantes também destacam a necessidade de um arcabouço jurídico sólido para garantir a eficácia dessas medidas de segregação. A criação de disposições legais explícitas que consagrem o princípio da segregação dos ativos dos clientes, similar à regulamentação que rege instituições financeiras tradicionais, é amplamente recomendada. Também se considera essencial que a legislação defina claramente os direitos de propriedade e as responsabilidades relacionadas aos ativos dos clientes mantidos pelos VASPs, oferecendo segurança jurídica, facilitando a resolução de disputas e protegendo os clientes em cenários de insolvência. A supervisão efetiva, possivelmente com o Banco Central do Brasil assumindo um papel fiscalizador, é vista como fundamental para o desenvolvimento de regras detalhadas, condução de inspeções e garantia de conformidade com as exigências de segregação de ativos. Acordos de custódia claros entre VASPs e clientes, especificando os termos, responsabilidades e obrigações relacionados à segregação de ativos, também são considerados cruciais, com a recomendação de que esses acordos comuniquem claramente os riscos envolvidos na custódia dos ativos e os mecanismos empregados para sua segregação.
Por fim, alguns participantes mencionam a descentralização como o modelo ideal para a segurança, onde os próprios clientes teriam controle total de seus ativos, embora sua implementação no atual marco regulatório seja desafiadora. Nos casos em que a custódia centralizada seja empregada, a combinação de medidas operacionais e jurídicas robustas é considerada crucial para assegurar a segregação eficaz e a proteção dos ativos dos clientes. Além disso, há o reconhecimento das especificidades tecnológicas do mercado de ativos virtuais, com sugestões para permitir que uma pequena porcentagem dos ativos dos clientes seja mantida em carteiras “quentes”, para facilitar a liquidez nas negociações, desde que essas carteiras sejam adequadamente respaldadas e sujeitas a controles rigorosos. A implementação de procedimentos seguros e padronizados para a gestão e armazenamento das chaves privadas, essenciais para controlar o acesso aos ativos virtuais, também foi destacada como uma medida importante.
Em relação à gestão de riscos, algumas fontes sugerem exceções limitadas e bem definidas para certas operações, como o pagamento de taxas de transação (gas fees), desde que essas exceções sejam transparentes e sujeitas a controles estritos. Reconhecendo a diversidade do setor de ativos virtuais, alguns participantes defendem uma abordagem regulatória escalonada, adaptando os requisitos às atividades e perfis de risco específicos de diferentes VASPs, dado que um VASP focado em serviços de troca pode ter necessidades de mitigação de riscos diferentes de outro que se especializa em custódia. O conjunto de respostas à consulta pública destaca a importância da segregação de ativos como um pilar essencial para a construção de confiança e mitigação de riscos no crescente mercado de ativos virtuais, oferecendo um valioso roteiro para os reguladores que buscam estabelecer um marco seguro e transparente para a proteção dos ativos dos clientes..
*Isac Costa é advogado, professor do Insper e da LegalBlocks. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.
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