Com o início da vigência da Lei de Ativos Virtuais no Brasil (Lei nº 14.478/22) e a edição do Decreto nº 11.563/23 em 13/6, todos os olhos se voltam para o Banco Central, que será responsável pela autorização, supervisão e disciplina infralegal da prestação de serviços virtuais no Brasil. Em paralelo, a Comissão de Valores Mobiliários tem dialogado com participantes do mercado para estabelecer uma fronteira mais clara entre o campo dos valores mobiliários e o novo território dos ativos virtuais. Com base na regulação vigente dos mercados bancário e de capitais no Brasil, o que podemos esperar para os próximos meses?
O Banco Central possivelmente abrirá uma consulta pública apresentando uma ou mais minutas de Resoluções sobre o tema. Vale lembrar que as preocupações nesse contexto envolvem a estabilidade financeira, a resiliência operacional de sistemas e a concorrência no mercado financeiro.
Nesse quadro, um bom ponto de partida para nos prepararmos para a futura regulação de ativos virtuais pelo Banco Central é a análise das regras sobre arranjos de pagamento, expedidas com base na Lei nº 12.865/13. Trata-se de uma regulação ligeiramente fragmentada, com normas do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central, estabelecendo diretrizes (Res. CMN n° 4.282/13), gerenciamento de riscos, requisitos mínimos de patrimônio e governança (Circular BCB n° 3.681/13), regulamento geral (Res. BCB n° 150/21), normas de constituição e funcionamento (Res. BCB n° 80/21), procedimento geral, documentação e prazos de autorização nas Res. CMN n° 4.970/21 e nas Res. BCB n° 103/21 e 108/21), procedimento específico de autorização de instituições de pagamento (Res. BCB n° 81/21).
Ainda, aplicam-se para as instituições de pagamento, as normas gerais para instituições financeiras envolvendo controles internos (Res. CMN n° 4.968/21), prevenção à lavagem de dinheiro (Circular BCB n° 3.978/20), tarifas (Res. CMN n° 3.919/10). Por ora, é cedo para dizer se o procedimento de autorização será simplificado ou se as normas prudenciais (Res. CMN n° 4.553/17 e Res. BCB n° 197/22 e 198/22) precisarão de adaptação ou não serão consideradas, de início, em função do porte atual dos prestadores de serviços de ativos virtuais.
Com a enumeração das regras acima, quero sinalizar que será necessário estudar as novas normas de prestadores de serviços de ativos virtuais à luz do arcabouço vigente para as demais instituições reguladas pelo Banco Central. E esse esforço pode ser pouco efetivo, uma vez que é difícil afirmar com certeza quais, dentre os mais de vinte mil criptoativos catalogados, se enquadram na definição prevista na lei (aqui adaptada com certa licença poética): uma representação digital de valor para uso como meio de pagamento ou investimento que não seja moeda soberana, ativo financeiro, valor mobiliário ou programa de recompensas.
Considerando que a Securities and Exchange Commission (SEC), regulador norte-americano do mercado de capitais, qualificou a quase totalidade dos criptoativos como valores mobiliários (exceto o bitcoin), é uma questão de tempo até que Banco Central e CVM tenham que se manifestar sobre que empresas precisarão de registro em cada autarquia em função dos ativos virtuais atrelados aos seus serviços. Basta que um único ativo virtual seja valor mobiliário para atrair o regime tradicional (e provavelmente mais oneroso) da CVM, inviabilizando os esforços para a formulação de uma regulação mais flexível para a criptoeconomia. Nessa hipótese, a
empresa (por exemplo, uma exchange, tokenizadora ou custodiante) deverá optar entre enquadrar-se nas regras da CVM ou deixar de ofertar ou listar o ativo virtual que for valor mobiliário.
Por essa razão, considero que, embora meritória, a regulação de ativos virtuais apartada do regime dos valores mobiliários é um contrassenso e levará a situações de perplexidade em sua aplicação. A maioria dos ativos virtuais hoje é emitida não para gerar uma “utilidade” abstrata para seus adquirentes, mas sim com a finalidade de financiar um projeto, permitir a circulação de recebíveis e outros ativos (financeiros ou não) e consubstanciar um investimento alternativo (sem entrar na discussão sobre seu caráter fortemente especulativo).
É compreensível que as empresas do setor tenham se mobilizado para buscar um regime menos oneroso e mais racional e, com isso, depositado esperanças na regulação específica de ativos virtuais apartada dos deveres de registro, transparência e supervisão próprios do mercado de capitais. Contudo, o uso de criptoativos como meio de pagamento é irrelevante em comparação com sua utilização como instrumento financeiro ou, em essência, como contrato de investimento coletivo. Não se pode negar a realidade do mercado, mesmo para os tokens de recebíveis ou tokens de renda fixa, que, a meu ver, representam uma camada segregada dos seus ativos subjacentes e, por isso, uma relação jurídica distinta, mais próxima do conceito de valor mobiliário.
Tendo isso em mente, a CVM já se pronunciou por meio do Parecer de Orientação CVM nº 40/22 e do Ofício Circular CVM/SSE nº 4/23, a fim de fornecer subsídios mínimos para a tomada de decisão pelos agentes de mercado, evitando a proliferação de stop orders e processos sancionadores. A postura do regulador brasileiro é muito mais condizente com o ideal de liberdade econômica, em contraste com a investida da SEC contra a criptoeconomia nos Estados Unidos.
Ao fim e ao cabo, a qualificação de um ativo virtual como valor mobiliário ou não pode ser decisiva para que toda a regulação a ser editada pelo Banco Central já nasça morta, porque inaplicável a situações reais. A menos que um prestador de serviço de ativos virtuais limite-se ao bitcoin, o que não me parece uma opção viável. É uma pena que tanta energia tenha sido gasta de forma ineficiente, porque foi em uma direção distinta da dos riscos específicos do setor: proteção aos investidores, prevenção à manipulação de preços, uso indevido de informação privilegiada e transparência para os emissores de tokens, sendo a estabilidade financeira um risco mínimo em comparação com os demais.
Até aqui, podemos buscar consolo no valor simbólico da lei e das normas que virão, por fornecerem a impressão de que haverá segurança jurídica no setor, atraindo mais investidores e instituições interessadas em compreender e empreender na criptoeconomia. Mas o futuro da criptoeconomia e da utilização das tecnologias descentralizadas como forma de modernizar as infraestruturas de mercado financeiro dependerá da CVM. Ou, alternativamente, do Real Digital, um caminho que, a meu ver, nada tem a ver com a regulação específica de ativos virtuais – mas esse é um tema para outro texto.
*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado
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