Nas últimas semanas, tivemos um novo capítulo da cruzada da Securities and Exchange Commission (SEC), que regula o mercado de capitais norte-americano, contra empresas do mundo cripto. Para Gary Gensler, presidente da SEC, praticamente todos os criptoativos que existem podem ser considerados securities (valores mobiliários), isto é, são contratos de investimento coletivo, uma vez que (a) são ofertados publicamente; (b) geram expectativa de benefício econômico para quem os adquire; e (c) esse benefício resulta da atuação de uma empresa identificável.
Quando alguém investe em certo ativo, espera obter retorno pelo pagamento de juros ou proventos ou, então, pela venda em mercado secundário. O ativo pode ser uma quota de sociedade em conta de participação, contrato de mútuo, cédula de produto rural (avestruz ou boi gordo, p. ex.) ou outro título de crédito ou um contrato de qualquer natureza (um token, fungível ou não). Se o benefício econômico decorrer da atuação de uma agente identificável (que a SEC chama de “active participant”), então o ativo só pode ser ofertado se a entidade obtiver o registro de emissor e o registro da oferta ou, então, uma dispensa de registro ou de requisito da oferta.
Na prática, a teoria é diferente. Em 9.2.2023, a SEC divulgou que a exchange Kraken, além de pagar US$30 milhões e se sujeitar a outras penalidades, deve encerrar a oferta do seu programa de “staking-as-a-service”, por meio do qual os investidores receberiam, de acordo com anúncios da empresa, um retorno anual de até 21% com base nos tokens depositados.
Após a mudança no protocolo Ethereum ocorrida em setembro de 2022, a validação das transações e a remuneração por esta tarefa passaram a depender não mais de investimento em poder computacional (no mecanismo de consenso de “prova de trabalho”), mas sim na quantidade de tokens detidos (no mecanismo de “prova de participação”). Deixando o jargão e a complexidade técnica de lado, para que a rede continue a funcionar, a remuneração dos participantes responsáveis pela validação das transações é diretamente proporcional à quantidade de tokens que detêm (e utilizam para “arriscar a própria pele” nas rodadas de verificação dos dados). Com isso, o mercado de staking foi impulsionado: esses participantes passaram a tomar tokens em empréstimo, ofertando uma remuneração decorrente do resultado de sua utilização nas rodadas de proof of staking.
O serviço oferecido pela Kraren foi interpretado pela SEC com uma espécie de depósito remunerado. Para a entidade, quando investidores oferecem seus tokens em serviços de staking, eles perdem o controle sobre a propriedade desses tokens e sujeitam-se aos riscos inerentes às plataformas, com “pouquíssima proteção”. O esforço da Kraken seria determinante para mitigar esses riscos e garantir os pagamentos aos investidores – e, o que seria pior, a SEC entendeu que os retornos seriam não apenas excessivos, mas que a Kraken tinha, nos termos do serviço, o direito de não pagar nenhuma remuneração em certos casos. Assim, a ausência de registro teria como consequência a falta de transparência adequada sobre as operações e potenciais danos aos investidores quando tentam resgatar seus recursos (vide os casos de insolvência em 2022).
Poucos dias depois, a Paxos, responsável pela emissão da stablecoin Binance USD, anunciou que, em decorrência da atuação de autoridades norte-americanas, deixaria de emitir novos tokens BUSD. No momento em que esse texto é finalizado, ainda não há maiores detalhes sobre a atuação da SEC no caso, mas é possível antecipar que o regulador norte-americano, após testemunhar a capitalização de mercado do token BUSD desde 2021 chegar a US$23,5 bilhões, entendeu que os adquirentes da stablecoin têm a expectativa de algum benefício econômico que decorre do esforço da Binance, da Paxos ou de outras empresas.
Quer você concorde ou não com o raciocínio da SEC, podemos chegar a um mínimo consenso (trocadilho intencional): há enorme insegurança jurídica na criptoeconomia, pois o Estado tem o poder de, por meio do direito, controlar o significado das palavras e, com isso, determinar se um projeto irá ou não prosseguir. Uma stop order, uma condenação ou mesmo a mera existência de um processo sancionador pode acabar com uma empresa: veja-se, nos EUA, o caso da BlockFi, que, após ter levantado US$1,4 bilhão e atingir um valuation de US$3 bilhões, virou “pó” depois de a SEC ter entendido que a conta de depósito remunerada era security e, por isso, foi ofertada irregularmente. Discussões intrincadas – e aparentemente sem sentido para a maioria das pessoas, como a do meme que fez sucesso há alguns anos sobre um vestido ser “preto e azul” ou “branco e dourado” – são decisivas para empreendedores, seus colaboradores e investidores.
A presença de conceitos jurídicos indeterminados nas normas – aqui e alhures – pode ser uma carta branca para uma regulação com base na punição e os reguladores podem preferir se tornar “xerifes” em vez de arquitetos da formação de capital, como enunciado pela professora Roberta Karmel desde 1982, quando publicou “Regulation by Prosecution: The Securities and Exchange Commission Vs. Corporate America” – você não leu errado: a discussão sobre a predominância de um viés punitivista tem mais de quatro décadas. Imbuída dessas ideias, Hester Pierce, Commissioner da SEC, criticou publicamente a decisão da entidade, agravando um mal-estar interno na entidade relativo à tensão entre “vigiar e punir” ou “compreender para regular”.
Infelizmente, a maior parte da energia está sendo despendida nessas discussões e não na busca pela resposta a uma pergunta mais importante: como a regulação pode ajudar a combater fraudes na criptoeconomia sem sufocar o que há de bom em termos de inovação financeira?
De um lado, o frenesi em torno dos criptoativos pode ser fruto da expectativa de retornos irreais, de um marketing agressivo que explora vieses cognitivos e da formação de pirâmides e outras fraudes – não há como negar a existência de reis, rainhas, príncipes, sheiks, faraós e outros que lesaram inúmeros investidores. De outro lado, será que o barulho dos “tiros” e a comoção resultante não nos impede de ver que há algo que possa ser aproveitado para construir o futuro
do mercado financeiro?
Será que o mercado financeiro atual está cumprindo a sua função econômica? Quão difícil é para uma empresa de menor porte obter recursos junto ao público, quanto dinheiro fica na mão de instituições incumbentes em mercados concentrados? Será que não conseguiríamos aproveitar tecnologias emergentes para reduzir os custos da realização de ofertas públicas e o custo do capital para as empresas?
Ainda, quão eficaz é regular por meio da imposição de penalidades? Podem pais de uma criança introjetar valores sociais apenas por meio da “chibata”? Talvez seja necessário, primeiro, compreender e, então, regular, orientando os participantes sobre os limites, possibilidades e obrigações, canalizando a energia punitiva para os casos mais dramáticos. Não há retorno sem risco e quem regula o mercado de capitais não pode, em nome da prevenção de riscos, desnaturar a atividade econômica e a inovação que, em essência, decorrem da assunção de riscos. Precisamos de escadas e não de muros.
*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre
(FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde
também atuou como assessor do Colegiado
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