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Seita ou religião: significados da aprovação de ETF de bitcoin pela SEC

Em 10 de janeiro, a Securities and Exchange Commision (SEC), o regulador norte-americano do mercado de capitais aprovou, após uma longa espera, as propostas apresentadas por diversas gestoras para a criação de um novo produto financeiro: exchange traded funds (ETF) referenciados nas cotações do bitcoin. A seguir, exploro diversos significados e consequências desse fato para o futuro do mercado financeiro.

Há algum tempo, o Financial Times produziu uma série de podcasts intitulada “Um guia cripto para céticos” e, em um dos episódios, comparou o entusiasmo de investidores e empreendedores do setor com o comportamento de membros de uma seita. Essa analogia nos leva a uma pergunta instigante: em que momento uma seita torna-se uma religião? Em outros termos, quais são os critérios para que uma crença faça jus à proteção da liberdade religiosa e não seja mero objeto de piada?

Por exemplo, quando criança, eu frequentei a Igreja Adventista do Sétimo Dia, que foi fundada por um grupo de pessoas que acreditava que o apocalipse ocorreria em 22 de outubro de 1844, com base em interpretações da bíblia. Atualmente, se alguém vier a público hoje e anunciar uma data para o fim do mundo com tamanha precisão, penso que haverá inúmeros memes e vídeos virais e, dificilmente, a profecia será levada a sério. Entretanto, o movimento adventista seguiu firme, reviu suas premissas e hoje é uma religião mundialmente reconhecida.

O que foi determinante nessa transição?

Penso que o reconhecimento social de uma crença depende do quanto determinada narrativa é aceita ou legitimada. É uma questão mais cultural do que econômica, talvez. Por isso, a formação de uma massa crítica de “fiéis” pode fazer com que os fenômenos mais estranhos se tornem socialmente aceitáveis, tais como as dancinhas do TikTok ou cosplays em feiras como a Comic Com.

Algo parecido vem ocorrendo com o bitcoin e, em alguma medida, com os demais criptoativos. Inicialmente, uma invenção restrita a um grupo de programadores interessados em criptografia e com ideais libertários, a ideia foi espalhada com a promessa de que o futuro do sistema financeiro não dependeria de Estados ou de grandes bancos. As instituições que falharam na crise de 2008 e geraram caos econômico perderam a credibilidade de grande parte da população. Some-se a isso certa animosidade recorrente a banqueiros e instituições financeiras em geral e surge, assim, uma nova “fé”.

Com o tempo, constatou-se que o bitcoin não foi concebido para ser um meio de pagamento apto a viabilizar transações em grande volume e em tempo real. Ainda, o caminho trouxe obstáculos como a dificuldade na compreensão do conceito de wallets, o risco de perda das chaves (e dos valores envolvidos) e, ainda, a dificuldade na aproximação entre compradores e vendedores. As exchanges surgiram para endereçar alguns desses problemas, mas, com isso, tornaram-se intermediários importantes em uma inovação que buscava, sobretudo, a desintermediação.

A grande volatilidade dos preços do bitcoin e os colapsos sucessivos (com inúmeras mortes e ressurreições, invernos e verões) levaram ao ceticismo sobre sua capacidade de se tornar uma reserva de valor ou unidade de conta. Com isso, não seria possível, pelo menos por ora, admitir seu potencial para desempenhar as funções de moeda.

Mas, afinal, por que alguém compra bitcoins?

Essa pergunta não tem uma resposta simples e é tentadora a hipótese de que vieses cognitivos são o combustível de uma nova mania, à semelhança das tulipas na Holanda há alguns séculos.

Ora, estamos diante de um ativo que não gera direitos patrimoniais ou políticos, não gera direito de crédito ou expectativa de benefício econômico senão a de que, em um mercado secundário, os preços irão aumentar em razão do incremento da demanda em contraste com uma oferta que se torna gradualmente inelástica. Não é à toa que a narrativa do bitcoin é comparada à de uma pirâmide financeira, que depende de alguém mais tolo (greater fool) para manter a alta.

Contudo, não podemos deixar de reconhecer que o valor do ouro e das moedas fiduciárias depende de alguma fé, de uma narrativa socialmente compartilhada e fundada na lei ou em tradições seculares.

A par das digressões filosóficas e analogias, a dificuldade na aquisição de bitcoins e no controle de sua propriedade fez com que as pessoas buscassem alternativas mais amigáveis para investirem nesse tipo de ativo. Além das exchanges, a exposição via fundos de investimento tornou-se uma alternativa mais segura, uma vez que sua regulação pode, ao menos em teoria, oferecer alguma proteção aos cotistas.

Assim, o mercado aposta que os gatekeepers – especialmente gestores e administradores fiduciários – farão a sua parte e não irão desaparecer com os recursos dos seus clientes, como ocorreu com algumas exchanges. E que irão diligenciar para que ataques cibernéticos e outros riscos sejam mitigados.

Com a aprovação de ETFs de bitcoin, investidores em geral poderão ter uma exposição em um volume relevante, havendo projeção de influxos nesse mercado da ordem de dezenas de bilhões de dólares. O aumento da demanda por bitcoin pode fazer com que sua cotação – que quase triplicou desde outubro de 2021 – chegue a perto de US$ 100 mil.

A popularidade do bitcoin como investimento pode contribuir para reforçar a sua legitimidade, a despeito das críticas sobre a inexistência de qualquer valor intrínseco. Da mesma forma como o ouro, um dia, foi apenas um metal brilhante ineficaz para a construção de ferramentas ou outras utilidades, deixou de ser adorno e se tornou uma commodity financeira e hipnotizou o mundo na época do bulionismo, o bitcoin vai deixando de ser mania ou moda e sendo incorporado ao consciente coletivo do mercado financeiro.

A tecnologia da informação e, em especial, a internet aceleraram as dinâmicas sociais e encurtaram o tempo entre revoluções em diversos setores. Não será improvável se o bitcoin, apesar das inúmeras objeções às suas características, não precise de séculos para se consolidar como um ativo financeiro levado a sério, tal com o ouro. A seita, ao que tudo indica, caminha para se tornar uma religião organizada e reconhecida pelo Estado.

*Isac Costa é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec, do Insper e da LegalBlocks. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.

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