A nova era digital tem criado novos modelos de negócios, o que fez com que a indústria de criptoativos se tornasse bastante atraente para muitos empresários.
Essa forte adesão do mercado impulsionou o número de ICO’s nos últimos anos, o que chamou a atenção dos reguladores, principalmente daqueles responsáveis pelo mercado de valores mobiliários.
Mas afinal, o que é um ICO e como saber se não estou realizando um STO?
Antes de responder esse questionamento é necessário ter a ciência de quais são os tokens possíveis de serem objeto de emissão.
I ESPÉCIES DE TOKENS
Atualmente existem mais de uma espécie de tokens, de modo que ter a exata ciência das suas características facilita a identificação na hora de efetuar a emissão.
I.I PAYMENT TOKENS:
Os tokens de pagamento são os mais conhecidos pois estão atrelados a ideia de criptomoedas. Eles funcionam como dinheiro, sendo utilizados como meio de pagamento, porém, nesse caso, estar-se referindo a uma moeda digital criptografada e transacionada em rede Blockchain. Tenha-se, como exemplo, o Bitcoin, Litecoin e as Stable coins.
Registre-se, nesse aspecto, que, em que pese o bitcoin também ser utilizado como reserva de valor, semelhante a um investimento, a função primordial por trás desse ativo é servir como meio de pagamento e, por isso, os reguladores enxergam essa modalidade de tokens como algo semelhante a moeda fiduciária.
I.II UTILITY TOKENS:
Os tokens de utilidade são aqueles que conferem ao seu titular uma certa utilidade dentro de um ecossistema.
Se valendo da analogia, podem ser assemelhados a uma espécie de voucher digital que atribui certas vantagens como descontos em produtos, passes livres em shows e etc.
Pontua-se, ademais, que, assim como os tokens de pagamento, os tokens de utilidade podem ser transacionados por outros tokens ou criptomoedas.
I.III SECURITY TOKENS
Os tokens de seguridade são ativos negociáveis. Eles representam títulos e valores mobiliários, semelhantes ao direito de participação em uma empresa, por exemplo.
Logo, atuam como uma espécie de investimento e, por isso mesmo, estão sob o âmbito de jurisdição do órgão responsável pela regulação do mercado de valores mobiliários.
O parecer de nº 40/22 da CVM traz expressamente quais tokens podem ser considerados securities.
De acordo com mencionado instrumento, são considerados Securities Tokens a representação digital de quaisquer dos valores mobiliários previstos no art. 2° da Lei nº 6.385/76. São eles:
Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I – As ações, debêntures e bônus de subscrição;
II – Os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento
relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III – Os certificados de depósito de valores mobiliários;
IV – As cédulas de debêntures;
V – As cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes
de investimento em quaisquer ativos;
VI – As notas comerciais;
VII – os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos
subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII – outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e
IX – Quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de
investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de
remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos
advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
Além disso, para a CVM, todo token que represente um certificado de recebíveis também será considerado um valor mobiliário.
A CVM adverte, por fim, que será considerada oferta de valor mobiliário a emissão de tokens que representem um contrato de investimento coletivo.
Por ser um conceito bastante aberto, as características dessa última hipótese serão analisadas mais a diante.
II ICO x STO
De maneira simplificada, o ICO é um acrônimo para “Inicial Coin Offering”, sendo um procedimento similar a oferta pública inicial das empresas tradicionais (IPO). A diferença, aqui, é que no ICO a empresa realiza uma oferta inicial de moedas ou de tokens e não de ações.
Apenas para um maior esclarecimento, o ICO coloca à venda novos criptoativos com o objetivo de angariar fundos para um projeto baseado em blockchain – seja ele o da produção de uma nova moeda em si, seja de algum outro produto ou serviço
Um STO, por sua vez, representa a oferta inicial de Security Tokens (Security Token Offering).
O grande ponto a ser observado por qualquer empresário antes de realizar a emissão de tokens é, justamente, saber se o seu projeto está ofertando um utility token ou um security token.
Afirma-se isso, pois o procedimento para realizar um STO é muito mais custoso e burocrático quando comparado à um ICO. Isso ocorre porque a participação e controle do órgão regulador do mercado de valores mobiliários são expressivos, o que demanda a aquisição de registro, adequação aos requerimentos efetuados pela autarquia e até, algumas vezes, a limitação na oferta, além de diversos contratempos.
Cumpre frisar, que a oferta irregular de valor mobiliário pode provocar na aplicação de multa ao sujeito responsável pela emissão, sem prejuízo das sanções penais cabíveis.
Além disso, outro risco que o empresário que não identifica a natureza econômica do token emitido está sujeito é receber um stop order do órgão regulador, o que implicará em perdas significativas para o empreendimento.
Em síntese, o empresário pode estar sujeito a cometer uma infração contra o sistema financeiro nacional, nos termos do art. 7º, II e art. 8º, ambos da Lei n° 8.492 de 86.1
Por isso, o acompanhamento de um advogado se mostra indispensável em todas as etapas do processo de emissão de tokens.
Registre-se, por fim, que não é porque um token possui uma utilidade que ele estará fora do âmbito de jurisdição do órgão regulador do mercado de valores mobiliários.
Sim, porque é possível que um mesmo ativo virtual seja enquadrado tanto como utility token como um security token, possuindo natureza híbrida. Por causa da dualidade, anteriormente referida, é possível que NFT´s, que a princípio não possuem qualquer semelhança com o conceito valor mobiliário, possam ser objetos de investigação do regulador.
Portanto, a despeito da existência de utilidade, a oferta de tokens de natureza hibrida demandará a estrita observância aos regulamentos da CVM.
III HOWEY TEST
1 Art. 7º Emitir, oferecer ou negociar, de qualquer modo, títulos ou valores mobiliários:
II – Sem registro prévio de emissão junto à autoridade competente, em condições divergentes das constantes do registro ou irregularmente registrados;
Art. 8º Exigir, em desacordo com a legislação (Vetado), juro, comissão ou qualquer tipo de remuneração sobre operação de crédito ou de seguro, administração de fundo mútuo ou fiscal ou de consórcio, serviço de corretagem ou distribuição de títulos ou valores mobiliários:
Pena – Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
O Howey Test refere-se ao caso da Suprema Corte norte americana para determinar se uma transação se qualifica como um contrato de investimento coletivo.
A Suprema Corte dos EUA adotou o Teste de Howey em 1946 para fornecer uma análise uniforme para tribunais inferiores e litigantes a serem aplicados ao determinar se um investimento se qualifica como um título.
Basicamente, para que seja verificada a natureza de título é necessário que as perguntas indicadas no teste sejam cumulativamente respondidas de maneira positiva, caso contrário, se ao menos uma delas for negativa, não estaremos diante de um contrato de investimento coletivo.
É preciso dizer, ainda, que as perguntas do Teste de Howey variam ligeiramente de jurisdição para jurisdição, todavia todas derivam do mesmo ponto comum, aquele definido pela Suprema Corte dos EUA.
Para a corte americana, é preciso haver (I) um investimento; (II) em um empreendimento comum; (III) com expectativa razoável de aquisição de lucro; (IV) lucro este que deve ser advindo do esforço do promotor do projeto ou de um terceiro.
Nos EUA, caso todos os 4 pontos acima sejam verificados, estaremos diante de um contrato de investimento coletivo e, portanto, a respectiva oferta estará sujeita aos regramentos da SEC bem como do Security Act.
No Brasil, entretanto, apesar de a CVM se valer do mesmo teste para averiguar a natureza econômica de um determinado token, a autarquia se vale da utilização de 6 pontos de orientação e não apenas 4.
Veja abaixo, quais são eles e como eles são aplicados.
III.I INVESTIMENTO
Pergunta-se: é necessário o investimento por parte dos investidores para a aquisição dos tokens ofertados?
Logo, o que é avaliado nesse primeiro ponto é a onerosidade da oferta, ou seja, se os consumidores precisam aportar dinheiro para adquirir os ativos digitais emitidos.
Cumpre frisar, ademais, que muito se discutia se o pagamento dos tokens através de criptomoedas seria considerada situação suficiente para a verificação desse primeiro ponto do teste, já que as criptomoedas não são classificadas como moedas de curso legal.
Todavia, é preciso afirmar que essa controvérsia já foi pacificada, de modo que, para o órgão regulador, a aquisição de tokens mediante a transferência de qualquer bem suscetível de avaliação econômica, dentre eles os criptoativos, é suficiente para a averiguação do primeiro ponto do Howey Test.
Frisa-se, por fim, que todo caso a ser analisado, invariavelmente, terá esse ponto do teste satisfeito.
III.II FORMALIZAÇÃO
Pergunta-se: a oferta é formalizada por um título ou contrato?
É dizer, para se verificar a incidência desse segundo ponto a relação estabelecida entre o ofertante e os investidores precisa ser formalizada por algum documento, independente da sua natureza jurídica ou forma específica.
Salienta-se, nesse aspecto, que as empresas que realizam ofertas de tokens, muitas vezes, utilizam Smart Contracts para formaliza-las, isto é, contratos virtuais, escritos como código de programação que pode ser executado em um computador, em vez de um documento impresso com uma linguagem propriamente jurídica.
Deste modo, assim como o primeiro requisito, a grande maioria dos casos envolvendo a emissão de tokens irá verificar a incidência do segundo ponto do teste.
III.III CARÁTER COLETIVO DO INVESTIMENTO
Pergunta-se: A oferta possui caráter de investimento coletivo?
Considera-se oferta coletiva aquela realizada indistintamente, podendo ser aderida por vários investidores.
A maioria dos projetos cripto, também satisfará esse terceiro ponto do teste.
III.IV OFERTA PÚBLICA
Pergunta-se: Como foi realizada a oferta?
Caso tenha sido realizada uma oferta pública, ou seja, a oferta ter sido endereçada para todo e qualquer tipo de investidor, seja por meio de site, redes sociais ou outro meio que permita a veiculação da oferta de maneira indistinta a uma gama de sujeitos, também haverá a incidência do quarto ponto do Howey Test.
Situação diversa ocorre quando a oferta é realizada de maneira privada, para um número pequeno de investidores. Pontua-se, aqui, que a oferta realizada a um número não superior a 20 investidores não causará maiores problemas com a CVM.
Entretanto, é preciso destacar que a grande maioria dos projetos deseja arrecadar o maior número de capital possível no seu ICO/STO, de modo que, muitas das vezes, irá optar por efetuar a oferta pública ao invés da privada.
III.V EXPECTATIVA DE BENEFÍCIO ECONOMICO
A chave para identificar se um determinado projeto está realizando uma oferta de security token é saber avaliar bem os últimos dois pontos.
No ponto de número cinco, pergunta-se: os investidores ao adquirirem os tokens possuem uma expectativa razoável de aquisição de lucro?
É preciso realizar uma análise delicada de todas as etapas do processo, para verificar se, de algum modo, os investidores receberão algum tipo de rendimento decorrente da aquisição dos tokens.
Sendo assim, criptoativos que estabeleçam o direito de seus titulares participarem nos resultados do empreendimento, inclusive por meio de participação ou resgate do capital, acordos de remuneração e recebimento de dividendos, terão, em princípio, preenchido esse requisito.
Registre-se, que a mera valorização do token no mercado secundário, fruto da lei da oferta e demanda, por si só, não é motivo suficiente para verificar a satisfação deste ponto do teste.
III.VI ESFORÇO DO EMPREENDEDOR OU DE TERCEIRO
No último ponto, pergunta-se: o lucro, porventura, adquirido é fruto do esforço de um terceiro ou do promotor do projeto?
Deve-se avaliar, portanto, a natureza e extensão da atuação desse agente para o sucesso do empreendimento. Esse requisito estará preenchido, por exemplo, nas situações em que a criação, aprimoramento, operação ou promoção do empreendimento dependam da atuação do promotor ou de terceiros.
Tenha-se, como exemplo, a situação em que um projeto é lançado, mas a rede ainda não está 100% operacionalizada. Deste modo, qualquer valoração dos tokens decorrentes do aprimoramento da rede, realizada pelos desenvolvedores do empreendimento, será considerada uma valoração advinda do esforço de terceiro.
Esse, também, é um ponto a ser delicadamente avaliado pelo profissional, pois é possível que alguns singelos detalhes como, por exemplo, a forma que a queima dos tokens será realizada ou, até mesmo, a forma com que a estrutura tecnológica será desenhada, impliquem na verificação deste último ponto.
É preciso advertir, todavia, que esses dois últimos pontos são bastante dinâmicos e, por isso, caso identificados em qual(is) parte(s) do projeto eles se fazem presentes, será possível altera-los, visando afastar a sua incidência.
Ocorre que para isso acontecer é indispensável que o responsável por essa atividade tenha um conhecimento bastante aprofundado da tecnologia para que seja possível identificar quais as alternativas possíveis, por isso é necessário que seja um especialista.
IV CONCLUSÃO
Ante tudo o que foi informado, fica evidente que a assessoria de um profissional jurídico se mostra extremamente relevante no momento de estruturar a oferta, de modo a certificar o afastamento do âmbito de regulação do órgão responsável pelo mercado de valores mobiliários ou, caso a intenção seja efetuar um STO, cumprir com todas as exigências formuladas pela autarquia bem como aquelas inseridas nas legislações que resguardam o mercado de capitais.
A título de conhecimento, caso queiram entender como a CVM se posiciona em casos envolvendo oferta irregular de security tokens, basta abrir o link que está na nota de rodapé, referente ao caso da ICONIC, julgado no ano de 2019.2
________________________________________
Jorge Barros é advogado especializado em
estruturação de negócios Blockchain e na
proteção de investidores contra Golpes de
Pirâmides Financeiras.
Deixe seu comentário