A vedação à estipulação de obrigações contratuais em moeda estrangeira, prevista no art. 318 do Código Civil e reiterada pelo art. 13 da Lei nº 14.286/2021, expressa uma das manifestações do princípio da soberania nacional — valor fundante do ordenamento jurídico brasileiro, consagrado no art. 1º, inciso I, da Constituição Federal
Trata-se de uma regra destinada a preservar a soberania monetária do real como unidade de conta e meio de pagamento interno. Isso evita a “dolarização” informal da economia, de modo a impedir o uso indiscriminado de moedas estrangeiras como forma de pagamento doméstico, o que poderia afetar a estabilidade macroeconômica, a política monetária do Banco Central, e a formação de preços internos.
No entanto, embora tais disposições traduzam um fundamento da República, sua aplicação tem gerado interpretações divergentes, sobretudo diante da crescente sofisticação das práticas negociais contemporâneas e da incorporação dos criptoativos às relações privadas.
À primeira vista, poder-se-ia sustentar que os criptoativos — ao servirem como referência de valor e meio de pagamento — desempenham, na prática, funções equiparáveis às das moedas estrangeiras, o que justificaria sua submissão à vedação legal. Tal interpretação partiria do pressuposto de que o critério relevante para a incidência do art. 318 do Código Civil não seria a origem soberana da moeda, mas sim o potencial desestabilizador que qualquer meio de pagamento não oficial poderia representar à política monetária nacional.
Sob essa ótica, a utilização crescente de criptoativos em substituição ao real poderia ser vista como uma forma de “desmonetização interna”, em conflito com os objetivos constitucionais de preservação da soberania monetária. Essa situação merece ainda mais atenção quando se verifica que o uso dos criptoativos como meio de pagamento se tornou ainda mais forte nos últimos anos, tendo o volume global de transações com esses ativos chegado próximo aos a US$ 108,5 trilhões em 2024.
Essa leitura, contudo, não é unânime. Em sentido oposto, há quem defenda que a norma proibitiva deve ser interpretada em consonância com a realidade socioeconômica contemporânea do país, na qual os criptoativos já desempenham papel importante nas práticas negociais, especialmente em contextos marcados pela desbancarização, volatilidade cambial e crescente automação dos fluxos econômicos.
Por não possuírem curso forçado nem serem emitidos por entes soberanos, esses ativos compõem uma categoria jurídica sui generis, distinta das moedas estrangeiras. De outra parte, seu uso recorrente, voluntário e funcional revela uma dinâmica social em processo de consolidação, cuja tutela jurídica não pode ser ignorada. Tal linha interpretativa encontra respaldo normativo na Lei nº 14.478/2022, que define o ativo virtual — espécie do gênero criptoativo — como representação digital de valor apta a ser utilizada como meio de pagamento.
O presente artigo tem por objetivo, pois, investigar criticamente essa problemática. Parte-se, para tanto, da análise da natureza dos criptoativos (o que eles são), com a finalidade de fornecer as bases teóricas para a compreensão das funções que desempenham nos modelos contratuais em que são empregados na atualidade (para o que eles servem). Busca-se, com isso, avaliar se sua utilização como meio de pagamento configura hipótese compatível com os valores e princípios constitucionais e, portanto, legitimando as cláusulas contratuais que os estipulam, ou se devem ser contemplados pela vedação legal do art. 318 do Código Civil e do art. 13 do marco cambial (Lei nº 14.286/2021).
1. Em breve voo panorâmico da interpretação jurisprudencial do art. 318 do Código Civil
Como ponto de partida, é necessário compreender qual interpretação a jurisprudência brasileira tem conferido ao art. 318 do Código Civil, em especial no que tange aos limites e exceções à vedação da estipulação de obrigações em moeda estrangeira. Nos termos deste dispositivo e do art. 13 da Lei nº 14.286/2021, vigora, como regra geral, a obrigatoriedade de que as obrigações pecuniárias sejam pactuadas em moeda corrente nacional, admitindo-se exceções apenas quando expressamente autorizadas por lei ou regulamentação específica.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 1.323.219/RJ, consolidou o seguinte entendimento: nas hipóteses legalmente admitidas, a conversão da obrigação em moeda estrangeira para reais deve observar a taxa de câmbio vigente na data do efetivo adimplemento; nos demais casos, aplica-se a taxa de câmbio da data da celebração do contrato, o que sinaliza a rigidez com que a jurisprudência tem tratado a matéria, sob o argumento de restringir a liberdade contratual em nome da preservação da moeda nacional como referência normativa obrigatória nas obrigações contratuais.
Dessa forma, seguindo o entendimento do julgado mencionado tem-se que somente é permitida a estipulação de pagamento em moeda estrangeira nos estritos contornos legais e jurisprudenciais.
E no que tange aos criptoativos, estariam eles abrangidos pela vedação legal? Em caso afirmativo, estariam dentro dessas exceções ou há alguma outra linha argumentativa que permita a sua estipulação em cláusulas de pagamento?
2. A natureza dos criptoativos e sua inserção nas relações contratuais
Antes de mais nada, é preciso dizer que, na experiência internacional, os criptoativos costumam ser classificados como bens incorpóreos — frequentemente equiparados a commodities digitais — cuja emissão e transferência se dão por meio de redes blockchain.
A partir desse panorama global, observa-se que, no Brasil, a noção de moeda é estritamente vinculada à sua emissão por autoridade estatal competente. De acordo com o art. 21, inciso VII c/c art. 164, §§ 1º a 3º, ambos da CF/88, considera-se moeda de curso legal aquela emitida exclusivamente pelo Banco Central, reconhecida obrigatoriamente como meio de pagamento para a liquidação de obrigações no território nacional.
Logo, partindo-se do pressuposto de que os criptoativos não são emitidos pelo Banco Central do Brasil, mas sim por entes não estatais — que podem incluir desde agentes privadas até estruturas descentralizadas sem comando central, como no caso do Bitcoin —, cujo valor, via de regra, decorre do funcionamento programático de uma rede ou aplicação, não há como compreendê-los como moeda nacional, tampouco como moeda estrangeira. Isso porque, para que um ativo seja qualificado como moeda estrangeira, é imprescindível que seja reconhecido como moeda de curso legal em país estrangeiro, o que não ocorre com os criptoativos.
Para ilustrar essa conclusão, é importante destacar que, mesmo o Bitcoin — há 4 anos havia sido reconhecido como moeda de curso legal em El Salvador —, deixou de possuir esse status após uma mudança legislativa recente. Com isso, atualmente, nenhum criptoativo é considerado moeda de curso legal em qualquer jurisdição.
À luz dessas considerações, consolida-se o entendimento de que, apesar da diversidade de enfoques regulatórios, os criptoativos são, geralmente, entendidos como commodities (bens), não podendo ser confundidos, salvo expressa previsão legal, com moedas nacionais ou estrangeiras.
É precisamente com base nesse tratamento jurídico e econômico que a literatura internacional propõe classificá-los em duas principais categorias. A primeira compreende as chamadas criptomoedas — ativos nativos das próprias redes, cuja existência é imperativa ao funcionamento dos respectivos protocolos.
Esses ativos desempenham papel essencial na estrutura econômica das blockchains, ao servirem, naturalmente, como e (i) instrumento de incentivo à atuação dos agentes responsáveis pela validação das transações, sejam eles mineradores (em sistemas baseados em proof of work) ou validadores (em modelos de proof of stake e variantes); e (ii) meio para o pagamento das taxas de transação (fees ou gas), exigidas para a inclusão de transações deflagradas pelos usuários nos blocos da cadeia (livro-razão), com vistas à assegurar a alocação eficiente de recursos computacionais ao compatibilizar os interesses entre usuários e validadores ou mineradores, promovendo, assim, a operacionalização, a sustentabilidade e a segurança da rede.
A segunda categoria compreende os tokens, criados a partir de contratos inteligentes implementados em redes blockchain programáveis — comumente denominadas plataformas de contratos inteligentes. Diferentemente das criptomoedas, esses ativos não são nativos do protocolo da rede, sendo originados do código desses programas autônomos, que regem sua emissão, circulação e eventual destruição.
De acordo com o parecer nº 40, da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, a depender da finalidade a que se destinam, dos direitos que representam ou da utilidade que oferecem, esses tokens podem assumir múltiplas funções, o que levou juristas e reguladores a subdividi-los em categorias específicas, como payment tokens, utility tokens, security tokens, entre outras.
Pois bem. A consolidação dos criptoativos nas relações contratuais privadas é uma resposta funcional às demandas da sociedade contemporânea por soluções mais eficientes, acessíveis e descentralizadas para a circulação de valor. Seu uso tem se expandido de maneira significativa no Brasil, impulsionado por características que os tornam especialmente atraentes em um cenário marcado por burocracia, volatilidade cambial, exclusão financeira e ineficiências nos meios tradicionais de pagamento e custódia.
A realização de transferências com criptoativos tem se mostrado significativamente mais eficiente do que o sistema fiduciário tradicional, especialmente em operações internacionais. Enquanto transferências bancárias convencionais estão sujeitas a diversas etapas intermediárias, tarifas elevadas, variações cambiais e exigências regulatórias que aumentam o custo e o tempo de liquidação, os criptoativos permitem a movimentação de valores de forma quase instantânea, com custos operacionais mínimos e sem necessidade de intermediários financeiros.
Essa desintermediação reduz a burocracia, aumenta a acessibilidade e promove maior previsibilidade nas transações, tornando os criptoativos uma alternativa cada vez mais vantajosa para quem busca agilidade, economia e eficiência na transferência de recursos.
Outra dimensão fundamental é a autocustódia dos ativos, que permite aos titulares manter controle direto e exclusivo sobre seus criptoativos, sem a necessidade de delegar essa função a custodiantes, atributo que se mostra especialmente relevante em um contexto de crescente desconfiança institucional e busca por autonomia patrimonial, sendo, a nosso ver, uma das mais interessantes expressões do exercício do direito de propriedade na “era digital”.
A isso se soma a transparência auditável das redes blockchain, que garante rastreabilidade e integridade das transações registradas em seu livro-razão, mitigando o risco de manipulação e promovendo maior previsibilidade na execução dos contratos.
A programabilidade, viabilizada pelos contratos inteligentes, também contribui para a crescente inserção dos criptoativos nas práticas contratuais. Por meio de códigos autoexecutáveis, é possível condicionar pagamentos a eventos específicos, criar lógicas de governança automatizadas e estruturar relações obrigacionais com reduzido risco de inadimplemento, o que amplia o escopo da liberdade contratual e da eficiência econômica nas relações privadas.
No caso brasileiro, essas propriedades se revelam ainda mais impactantes diante das fragilidades do sistema financeiro, da instabilidade e inflação monetária e das barreiras de entrada que impedem boa parte da população de acessar soluções financeiras além de simples pagamentos. Os criptoativos, nesse contexto, têm operado como instrumentos de inclusão econômica e racionalização contratual, sendo utilizados tanto em relações empresariais sofisticadas quanto em acordos cotidianos, informais ou descentralizados.
É possível afirmar, diante disso, que sua adesão social progressiva sugere que não se trata de uma simples inovação periférica, mas de uma realidade já incorporada às dinâmicas socioeconômicas do país.
Diante desse cenário, impõe-se refletir se o ordenamento jurídico pode — ou deve — desconsiderar o valor funcional que tais ativos vêm desempenhando nas relações privadas. A incidência de restrições legais, como a do art. 318 do Código Civil, sobre convenções privadas que elegem criptoativos como meio de pagamento, não pode prescindir de uma análise sobre os efeitos que tais práticas produzem e sua compatibilidade com os preceitos que sustentam o sistema jurídico em vigor.
Afinal, o direito não pode ser estanque, devendo, ao máximo, representar as necessidades e interesses da sociedade hodierna, sob pena de o ordenamento jurídico se tornar um instrumento de estagnação, desestimulando a inovação e comprometendo, por meio de normas anacrônicas, o desenvolvimento econômico e social.
É justamente essa a investigação que se propõe a realizar o capítulo seguinte.
3. Seriam as cláusulas de pagamento fixadas com criptoativos nulas de pleno direito?
A crescente utilização dos criptoativos como instrumentos de circulação de valor nas relações privadas não deve ser compreendida de forma isolada, como um simples reflexo tecnológico ou econômico, mas, sobretudo, como uma reação às disfunções vivenciadas pela sociedade contemporânea. Trata-se de um processo cujo grau de capilaridade e impacto impõe uma interpretação orientada pelos princípios e valores que sustentam a ordem jurídica, notadamente a liberdade de contratar, a função social dos contratos e o reconhecimento da inovação como vetor do desenvolvimento social e econômico.
Nesse contexto, ganha relevo a advertência de Pietro Perlingieri, segundo a qual “o jurista é independente e livre, mas não na aplicação da norma: ele está vinculado não à letra da lei, mas ao seu espírito, ao seu significado na globalidade do ordenamento, na realidade histórica sobre a qual deva incidir”. Tal ensinamento reforça a necessidade de se interpretar as regras jurídicas de forma sistêmica e evolutiva, em coerência com os valores constitucionais e com a realidade em constante transformação.
A unidade do ordenamento jurídico, longe de significar rigidez, deve ser compreendida como uma fluída coerência entre regras e princípios, cuja interação representa um dos traços característicos do direito contemporâneo. A função normativa do direito, nesse sentido, não se limita à reprodução passiva da realidade, mas exige sua conformação ativa e, em muitas circunstâncias, a superação de regras que se tornaram dissociadas da dinâmica concreta da vida em sociedade.
Como lembra o próprio autor, “toda transformação da realidade social interessa à ciência jurídica, já que o direito reage sobre a realidade normativa”. Interpretar o direito, portanto, implica reconhecer os movimentos históricos que redesenham as estruturas econômicas e contratuais e compreender como eles incidem sobre o conteúdo e a finalidade das normas jurídicas.
Nessa perspectiva, a interpretação hermenêutica, propõe-se examinar se a estipulação de pagamentos em criptoativos estaria abrangida pela vedação prevista no art. 318 do Código Civil e no art. 13 da Lei nº 14.286/2021 (Marco Legal do Câmbio). Para tanto, a análise será conduzida em duas etapas complementares: inicialmente, a partir da interpretação literal das normas em questão, e, em seguida, com base em uma interpretação teleológica e sistemática, capaz de aferir a compatibilidade ou não dos criptoativos com o regime jurídico proibitivo previsto nos dispositivos supracitados.
3.1 Análise literal dos dispositivos
Mesmo que se desconsidere, por ora, a relevância da nova realidade econômica, uma leitura estritamente literal da redação dos dispositivos revela que a vedação incide sobre convenções que buscam estipular o pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional. Os efeitos, inclusive, dessa estipulação, caso não encontrarem respaldo em nenhuma das hipóteses previstas nos incisos do art. 13, do Marco Legal do Câmbio, bem como na jurisprudência do STJ, são sancionadas com a nulidade absoluta.
Contudo, como visto anteriormente, os criptoativos — ainda que stablecoins —, não ostentam a natureza jurídica de moeda estrangeira, o que, à luz da interpretação gramatical da norma, já bastaria para afastar sua submissão à vedação legal.
Não se mostra admissível, portanto, que o Poder Judiciário, através de uma interpretação extensiva ou elástica do conceito de moeda estrangeira, ou mesmo o Banco Central do Brasil, por norma infralegal, venham a incluir os criptoativos no âmbito de incidência da proibição, sobretudo considerando que se trata de bens — e não moedas — com regime jurídico próprio e autônomo, desvinculado daquele previsto tanto no art. 318, do Código Civil, quanto pelo art. 13, da Lei nº 14.286/21.
Em verdade, a transferência de criptoativos em contraprestação à aquisição de bens ou serviços configura, sob o prisma técnico-jurídico, uma operação de permuta, dado que ambas as prestações consistem na entrega de bens fungíveis ou infungíveis, sem envolvimento de moeda de curso legal. Nessas hipóteses, não há o que se se falar na aplicação do art. 318, do Código Civil e do art. 13, do Marco Legal do Câmbio.
Em situações em que os criptoativos estão sendo usados para quitar obrigações originariamente pactuadas em reais, sua entrega caracteriza-se como dação em pagamento, nos termos do art. 356 do Código Civil. Como bens móveis incorpóreos (nos termos dos arts. 83 a 84 do Código Civil), sua aceitação exige apenas a anuência expressa do credor. Na ausência dessa anuência, o pagamento em criptoativos não produz efeitos extintivos da obrigação, mas tampouco ofende a legalidade ou a ordem pública.
Por fim, quando a obrigação seja constituída desde a origem com o compromisso de entregar criptoativos em contraprestação à prestação de um serviço, por exemplo, trata-se de uma obrigação sui generis, pois, embora fundada na entrega de bem fungível com valor econômico, não se encaixa integralmente nos moldes clássicos de obrigação pecuniária ou das obrigações de dar coisa certa ou incerta. Nesse contexto, os criptoativos cumprem a função econômica de pagamento por convenção privada, válida desde que não viole o regime jurídico cambial ou a ordem pública.
3.2 Análise teleológica e sistemática
Sob uma ótica teleológica, a interpretação segundo a qual os criptoativos estariam excluídos da vedação legal não decorre apenas de uma suposta omissão do legislador ou de uma brecha semântica no texto do art. 318 do Código Civil. Ao revés, ela decorre do reconhecimento de que os criptoativos já se encontram integrados ao tecido econômico e contratual da sociedade brasileira, desempenhando funções concretas de circulação de valor, com base em propriedades que lhes conferem legitimidade — como a descentralização, a transparência, a programabilidade, a velocidade e a autonomia patrimonial.
Declarar, de forma genérica, a nulidade de cláusulas contratuais que estipulem obrigações pecuniárias em criptoativos significaria interpretar o art. 318 e o art. 13, da Lei nº 14.286/21, de maneira descolada da realidade fática sobre a qual a norma incide. Vale lembrar que à época da edição de tais normas — em 2002 e 2021 — o fenômeno cripto ainda não havia alcançado densidade econômica ou institucional suficiente para ser juridicamente assimilado em sua plenitude.
Mais do que isso, tais ativos vêm atuando, em contextos específicos, como instrumentos de concretização de valores constitucionais, tais como a livre iniciativa (art. 1º, IV), a valorização do trabalho (art. 170, caput), a justiça social (art. 3º, III) e a inclusão econômica por meios tecnológicos, voltados à dignidade da pessoa humana.
Além disso, a pluralidade de espécies de criptoativos e a diversidade dos contextos normativos em que circulam exigem do intérprete uma abordagem mais refinada, que reconheça a multiplicidade de formas jurídicas e econômicas assumidas por esses ativos, conforme reconhecido pelo próprio legislador contemporâneo, que, por meio da Lei nº 14.478/2022, definiu o ativo virtual como representação digital de valor que pode ser utilizada como meio de pagamento, positivando uma das principais funções desempenhadas pelos criptoativos na âmbito social.
Não se mostra, portanto, coerente reconhecer tal função em sede legislativa e, ao mesmo tempo, negá-la por meio de uma interpretação anacrônica e descontextualizada de uma norma infraconstitucional concebida sob outra moldura histórica.
A leitura sistemática e axiologicamente orientada do art. 318 do Código Civil e do art. 13 do Marco Cambial impõe, portanto, que sua incidência seja restrita a casos em que a estipulação em moeda estrangeira — ou instrumentos equivalentes — comprometa, de fato, a estabilidade do sistema monetário nacional. Fora dessas hipóteses, deve prevalecer a liberdade das partes de convencionar os meios de pagamento mais adequados à racionalidade econômica da avença e à função social do contrato.
4. Conclusão
A vedação prevista no art. 318 do Código Civil c/c art. 13 do Marco Legal do Câmbio tem por finalidade resguardar a soberania monetária nacional, restringindo a estipulação de obrigações em moeda estrangeira no território brasileiro. Cuida-se de uma norma para assegurar a centralidade do real nas relações obrigacionais, funcionando como instrumento de preservação da estabilidade macroeconômica e da autoridade da política monetária estatal.
Essa finalidade, contudo, não justifica, por si só, a aplicação automática e generalizada da vedação legal aos criptoativos. Diferentemente da moeda estrangeira — cuja utilização pode, em determinados contextos, comprometer a eficácia da política cambial —, os criptoativos vêm sendo utilizados como instrumentos alternativos de circulação de valor, surgidos em resposta às limitações operacionais e institucionais dos meios e ativos convencionais. Sua adoção nas relações privadas decorre de demandas reais da economia contemporânea, caracterizada pela busca por soluções mais ágeis, descentralizadas, acessíveis e tecnicamente seguras.
Nesse cenário, os criptoativos configuram instrumentos aptos a satisfazer interesses jurídicos legítimos, sem que sua utilização represente, por si só, qualquer ameaça concreta à estabilidade da moeda nacional ou à soberania do Estado.
A nosso ver, declarar, in abstracto, a nulidade de cláusulas que estipulem obrigações em criptoativos implica não apenas ignorar a realidade concreta das atuais relações jurídicas, mas também desconsiderar os próprios objetivos constitucionais que tais ativos podem instrumentalizar — como a inclusão financeira, a promoção da livre iniciativa e a construção de uma existência digna mediante o uso de meios inovadores.
Essa compreensão é reforçada pela Lei nº 14.478/2022, que, ao reconhecer expressamente a possibilidade de utilização de ativos virtuais como meio de pagamento, positivou uma realidade já consolidada nas relações contratuais, conferindo respaldo normativo à função econômica que esses ativos já desempenhavam no mundo dos fatos.
Ademais, a própria natureza jurídica dos criptoativos — classificados como bens móveis incorpóreos, e não como moedas de curso legal, nacionais ou estrangeiras — afasta sua subsunção ao regime de vedação previsto naqueles dispositivos. Tal enquadramento não pode ser operado por analogia, nem tampouco por normas infralegais que ultrapassem os limites de sua função regulamentar.
Diante de todas essas considerações, conclui-se que a utilização de criptoativos como meio de pagamento, desde que pactuada de forma voluntária, legítima e funcionalmente adequada pelas partes, não configura afronta ao disposto no art. 318 do Código Civil nem no art. 13 da Lei nº 14.286/2021. Ao contrário, representa manifestação legítima da autonomia privada, cuja validade deve ser apreciada à luz das circunstâncias do caso concreto. A nulidade, nesse contexto, não pode ser presumida: somente se justifica diante de violação efetiva à ordem jurídica, jamais por abstrações alheias às transformações que hoje permeiam as relações obrigacionais.
Pedro Heitor atua nas áreas de Cryptolaw e Gambling Law na Bichara e Motta Advogados desde 2022. Como jurista, ele se dedica às dinâmicas relacionadas à regulamentação de criptoativos, finanças descentralizadas (DeFi), apostas e jogos. Pedro é autor de diversos artigos nestas áreas e sua formação é enriquecida por cursos em DeFi e Tokens Não Fungíveis (NFTs) na Universidade de Nicosia (Chipre). Além disso, fundou a comunidade jurídica “pedroheitor.eth”, promovendo debates e disseminando informações sobre Cryptolaw e Gambling Law.
Jorge Barros, advogado especializado na estruturação e regularização de empresas de tecnologia, com enfoque em negócios baseados em blockchain. Membro do Crypto Valley Association (CVA) – Associação em Zug, Suíça. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial – IBRADEMP. Co-fundador do Criptojur.
REFERÊNCIAS:
1 https://valor.globo.com/publicacoes/especiais/meios-de-pagamento/noticia/2024/08/28/cresce-uso-da-rede-de-criptomoedas-como-meio-de-pagamentos.ghtml
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cvgp1z1yrrlo
https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html
Art. 318. São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial.