Meme_coins

A febre das meme coins é um sintoma de uma mania bem conhecida

Se você fizer uma busca por imagens no Google pelo número 241543903, terá uma surpresa interessante: fotos de diversas pessoas colocando a cabeça dentro de uma geladeira. Esse foi um dos primeiros “memes” de que me recordo, antes de vídeos de gatinhos e imagens diversas com legendas (como a “Nazaré Confusa”). A internet serve como meio de rápida propagação de ideias “virais”, muitas vezes difíceis de serem compreendidas ou explicadas.

Como sabemos, esse fenômeno também tem sido observado no mercado financeiro. O caso mais emblemático foi o das ações da GameStop nos Estados Unidos, quando a atuação conjunta dos membros de uma comunidade na rede social Reddit fez com que os preços subissem vertiginosamente em pouco tempo. Os preços de outras ações variaram em razão do apetite de enxames de investidores de varejo, descolando-se de seus fundamentos econômicos – surgiram, assim, as “meme stocks”, uma tendência que ainda não foi observada no Brasil.

No mercado cripto, as “meme coins” têm feito muito sucesso, especialmente a “Doge coin” (objeto de comentários recorrentes de Elon Musk no Twitter) e, depois, “Shiba Inu”. Mas o que exatamente são essas “meme coins”? O que alguém está realmente comprando quando as adquire? Quais são os riscos envolvidos e com o que devemos nos preocupar ou o que pode ser feito para mitigá-los?

As “meme coins” são criadas com a explícita intenção de não representarem absolutamente nenhum ativo no sentido tradicional do termo: não é um projeto que utiliza bases descentralizadas para aplicações específicas, não há a pretensão de ser um meio eletrônico de pagamento nem de conferir direitos econômicos a seus titulares. Em termos práticos, não passam de “figurinhas coloridas” cujas cotações são infladas por posts em redes sociais ou outros mecanismos de “viralização” (ou manipulação?).

No entanto, o reinado canino das “meme coins” foi recentemente ameaçado pelo surgimento da “Pepe coin” ($PEPE). “Pepe” é um personagem de quadrinhos que, contra a vontade de seu criador, foi associado à direita radical nos EUA. Na página oficial do projeto, há o aviso “$PEPE é uma meme coin com nenhum valor intrínseco ou expectativa de retorno financeiro, não há equipe formal ou cronograma de atividades – a moeda é completamente inútil e destinada apenas à finalidade de entretenimento”.

Desde o final de abril, $PEPE teve valorização de mais de 2.000% e, após o anúncio de sua listagem em exchanges de destaque, chegou a ter uma capitalização de mercado acima de US$ 1 bilhão. Um ativo de “brincadeirinha”, com ganhos (e perdas de verdade), que ganhou notoriedade por, dentre outros fatores, transformar uma compra de uma quantia equivalente a US$250 em US$1,8 milhão em poucos dias. Vale notar que, dada a falta de liquidez nos pools de negociação do ativo, convertê-lo em dólares (ou equivalente) é um desafio. A constatação desse “lucro” e sua divulgação nas redes deflagrou uma “corrida do ouro” nos dias seguintes.

A transparência no registro das transações também permitiu verificar a existência de “baleias” (carteiras com grandes saldos) de $PEPE que compraram o ativo em condições curiosamente favoráveis. Em outros termos, quem controla o momento e quantidade da emissão e tem a informação de que o criptoativo será negociado em determinada exchange (e, com isso, aumentando sua liquidez) pode usar essa informação privilegiada para auferir uma vantagem indevida, porque inacessível aos demais agentes de mercado. Algumas dessas “baleias” conseguiram realizar seus lucros justamente quando as manchetes estampavam o potencial de ganhos em $PEPE, atraindo novos investidores.

Um dado importante – e pouco destacado – a respeito dos criptoativos e que favorece a alta volatilidade de seus preços é a sua expressão em frações muito pequenas de dólares, dificultando a percepção, pelo investidor final, da real variação das cotações. Por exemplo, no início de maio, $PEPE era cotado a $0,000005, tendo chegado a $0,000045 em cinco dias e, em período equivalente, caído para $0,0000020. Para a maioria das pessoas, é difícil aferir com facilidade que o primeiro movimento foi uma alta de 800% e, em seguida, uma queda de 55%.

Como não há controle sobre os beneficiários das transações, uma hipótese plausível para a alta, além da listagem sucessiva em exchanges ao longo do tempo, é a atuação de robôs automatizados que realizam negócios artificiais com compras a preços crescentes entre partes em conluio, gerando a falsa impressão de que há uma demanda compradora.

As transações envolvendo $PEPE tiveram consequências relevantes para a rede Ethereum, na qual o processamento das transações requer o pagamento de taxas para a execução de instruções dos smart contracts que implementam a lógica de cada token. Em termos mais simples, quanto maior for a demanda por transações na rede, maior é o custo para que sejam inseridas nos blocos sucessivos (que são escassos) e esse preço é pago para os participantes que ajudam a validar essas transações.

Essas taxas, conhecidas como “gas”, são monitoradas pelos participantes e seu aumento poderia refletir uma maior “utilidade” da rede. Porém, se o congestionamento é causado por transações que refletem aplicações “menos úteis” porque puramente especulativas (como é o caso das “meme coins”), testemunhamos uma espécie de “tragédia dos comuns”, quando a mania consome os recursos que poderiam ser usados para aplicações que não são cassinos disfarçados de inovação.

Extrapolando essa ideia, podemos afirmar que a especulação pura e simples pode ser entendida como uma doença congênita do mercado cripto, fazendo com que, em vez de representar a modernização das infraestruturas de mercado financeiro e ajudar a reduzir os custos do financiamento da atividade econômica pela emissão de ativos virtuais, toda a energia e esforços sejam direcionados para esquemas vazios ou fraudulentos de enriquecimento rápido.

Uma mentira repetida um bilhão de vezes não se torna verdade. Mas, se há milhões de usuários dispostos a pagar para viver essa mentira, muitas empresas não pensam duas vezes em vender essa facilidade ou até mesmo criar suas próprias mentiras para surfar a onda. Quem consegue emplacar uma “meme coin” viral tem o poder, ainda que por pouco tempo, de criar dinheiro “do nada”. Por seu turno, os cassinos virtuais agradecem. Um segmento relevante (talvez o maior) desse mercado impede que quem está fora leve a sério a tecnologia e os projetos relacionados à criptoeconomia – que passa a ser vista como mera “criptomania”, a ser retratada no futuro como mais uma dentre tantas bolhas financeiras.

*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre
(FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde
também atuou como assessor do Colegiado.

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