Textos recentes do Financial Times têm apresentado a tese “let crypto burn”, pois os criptoativos e a tecnologia blockchain ainda não teriam gerado valor relevante para o sistema econômico que justificasse uma regulação específica. Pior, uma eventual regulação seria uma chancela para um mercado que não a mereceria, pois sua dinâmica é a mesma de sites de apostas e cassinos e, por isso, deveria ser tratado como esses e não como instituições legítimas do mercado financeiro.
No Brasil, o advogado Marcelo Trindade apresentou argumento semelhante ao sugerir um sistema que “pouco gera para a economia real” e que “não gera risco para a estabilidade financeira” não deveria ser fiscalizado com o custo de “impostos dos que decidiram não participar das apostas”.
Talvez seja tarde demais para uma tese como essa, dada a aprovação do PL 4.401/21 no Brasil, o regulamento MiCA na União Europeia e o projeto Lummins-Gillibrand nos EUA e todos os eventos dos últimos três anos envolvendo o mercado cripto. Contudo, o cerne do debate é se precisamos ou não de uma regulação específica para o mercado de criptoativos.
Os criptoativos surgiram com a promessa de promover uma disrupção nos mecanismos de concreção do direito de propriedade, na negociação global de ativos e nas infraestruturas de mercado financeiro.
Apesar dos investimentos para criar casos de uso efetivos das tecnologias de registro distribuído, a atenção do mercado foi direcionada para a especulação. Muitos foram encantados pela oportunidade de ganhar dinheiro rápido, ignorando os respectivos riscos. As empresas não hesitaram em atender a essa demanda e o mercado cripto se transformou em um grande cassino.
Talvez o bitcoin fosse mais inofensivo quando era utilizado para comprar drogas e passaportes falsos pela internet. É difícil mensurar as perdas sofridas em esquemas de pirâmides, “puxadas de tapete” (rug pulls, quando os vendedores desaparecem com os valores) ou de manipulação pump-and-dump (euforia para comprar e depois os preços desabam), NFTs que viraram pó, “ICOs” de empresas duvidosas ou depósitos que foram vaporizados em empresas e fundos como Celsius, Voyager, 3AC, FTX e outros.
Obviamente, as autoridades não conseguiram banir uma tecnologia criada para ser resistente à censura. O foco estatal foi a proteção dos investidores-consumidores tendo como ponto de partida a regulação do mercado de capitais, baseada em um filtro estatal prévio (registro de companhia aberta e de oferta pública) sempre que o token ofertado tivesse as características de um valor mobiliário (security, tal como ações e debêntures). Pouco se discutiu sobre a adequação do regime existente (e seus encargos) às especificidades da criptoeconomia e os debates se concentraram na aplicação de uma checagem jurisprudencial (o teste de Howey) para verificar se um token deveria ou não ser submetido a registro antes de ser ofertado e negociado.
Em paralelo, as autoridades de prevenção à lavagem de dinheiro concluíram que é imprescindível identificar as partes em todas as transações, exigindo de todas as empresas que prestem serviços envolvendo ativos virtuais que implementem rotinas de cadastro de clientes (KYC – know your customer), supervisão de operações suspeitas e sua comunicação aos reguladores.
Ao contemplarmos os riscos efetivamente gerados nesse mercado, talvez pudéssemos concordar com a desnecessidade de uma regulação especial. Afinal, os serviços prestados (intermediação, securitização/tokenização, escrituração, custódia, depósito, crédito, pagamentos) já eram regulados e os deveres relativos ao cadastro de clientes e prevenção à lavagem de dinheiro já estavam bem definidos. Porém, os reguladores hesitaram, dado que os criptoativos não eram moeda fiduciária e não se poderia afirmar, a priori, se eram valores mobiliários. Faltava-lhes a certeza de que eram legitimados para agir.
Enquanto algumas empresas testavam modelos de negócios que realmente pudessem ter um caráter inovador, golpistas abusaram da liberdade econômica e da inércia das autoridades, causando o colapso de inúmeros projetos e danos irreversíveis aos investidores. As autoridades do Brasil e de todo o mundo precisam reconhecer que falharam ao demorarem demais para agir, esperando por um comando legislativo específico que não era necessário. Bastava aplicar as leis já existentes.
Porém, é mais fácil falar sobre o passado do que sobre o futuro. O que fica se segregarmos o aspecto especulativo do mercado cripto, que o faz ser tão semelhante a um cassino? A meu ver, temos a oportunidade de explorar novas formas de prover serviços de infraestrutura de mercado financeiro e viabilizar a interoperabilidade entre as instituições de mercado, em caráter global.
A tecnologia em questão pode permitir que ofertas públicas sejam feitas globalmente (e não restritas à B3 ou à Nasdaq, tornando obsoletos os depositary receipts), pode reduzir os custos de pós-negociação, tornar a administração fiduciária mais eficiente. A fragmentação da liquidez criará oportunidades para arbitragem de preços e formação de mercado, além da possibilidade de visualizar a concentração de posições, dando uma visibilidade sobre os beneficiários finais das transações sem revelar sua identidade. Talvez, com a redução dos custos operacionais de emissão e negociação de ativos, o mercado de capitais possa finalmente ser acessível a pequenas e médias empresas, como têm procurado demonstrar, no sandbox regulatório da CVM, as empresas SMU, BEE4 e QR Vórtx.
Podemos olhar o mercado cripto além do viés especulativo e, se for necessário projetar uma nova regulação, que seja para potencializar a inovação genuína e atrair investimentos com segurança jurídica para criarmos um mercado financeiro com menores custos de captação para as empresas, maior transparência e tratamento equitativo dos investidores na prestação de serviços, maior diversificação na oferta de instrumentos financeiros e, principalmente, democratização do acesso com as devidas salvaguardas.
O mercado financeiro pode catalisar ainda mais o desenvolvimento econômico, especialmente no Brasil, apesar de alguns estarem satisfeitos com o atual estado de coisas, com altos custos para realização de ofertas públicas, elevadas taxas nos serviços prestados e uma “indústria” de fundos na qual usualmente se verifica que a esmagadora maioria tem desempenho inferior ao seu benchmark.
É preciso inovar. E é preciso compreender a inovação, seu potencial e seus riscos para regulá-la. Precisamos resistir à tentação de aceitar a opção mais fácil, que é deixar tudo como está, torcendo para que o mercado cripto seja relegado aos livros de manias no mercado como as “tulipas do século XXI”. Pensar desse modo não faz jus a muitas pessoas que têm ajudado a desenvolver a parte saudável desse mercado.
*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.
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