O token e a ficha de cassino: investimento versus especulação Isac Costa* De acordo com dados recentemente divulgados pela Receita Federal do Brasil, pouco mais de 4 milhões de pessoas físicas e 92 mil pessoas jurídicas reportaram transações com criptomoedas em julho deste ano. O mercado cripto parece ter encontrado certo equilíbrio no Brasil, apesar do “inverno” de 2022, do mau desempenho, nos últimos meses, dos principais criptoativos e fundos de investimentos correlatos.
Nesse texto, gostaria de endereçar duas perguntas frequentes para quem tenta compreender esse mercado. A primeira delas envolve as razões pelas quais os investimentos em criptoativos são realizados por um número de pessoas próximo ou superior ao daquelas que investem na bolsa brasileira. A segunda pergunta diz respeito às vantagens das operações de tokenização para quem emite esses ativos virtuais e para quem os adquire e sua relação, ou melhor, disparidade com relação ao frenesi especulativo dos criptoativos.
No mercado de bolsa em nosso país, diversos participantes procuram promover a educação financeira e a regulação tem tentado assegurar a transparência das informações e a prevenção a fraudes e atuação em conflitos de interesses que venham a prejudicar investidores. O regime sancionador procura responsabilizar companhias, administradores, gestoras e demais profissionais de mercado nas hipóteses de insider trading, manipulação, escândalos contábeis e outras infrações. Ainda, eventual ressarcimento de prejuízos pode ser pleiteado perante a BSM e o Poder Judiciário (neste caso, ao menos, é possível acessar o patrimônio dos responsáveis).
Por sua vez, o mercado cripto é considerado, por muitos, uma “terra sem lei”. Essa perspectiva é compreensível, diante da presença de empresas sem sede ou capital no país, da frequência de pirâmides financeiras, da propaganda enganosa de retorno garantido e sem risco e da dificuldade de responsabilizar quem lesa investidores. Some-se a isso o fato de que as pessoas também parecem não se importar tanto que os tokens adquiridos, em sua maioria,representem títulos de dívida ou de participação em projetos que ofereçam a expectativa de dividendos – comparáveis a “fichas de um cassino virtual”.
A busca por maior diversificação de risco poderia explicar para explicar esse “apetite” dos investidores, mas penso que essa hipótese provavelmente não se sustenta diante da má educação financeira em nosso país e da provável pouca familiaridade desses investidores com outras classes de ativos.
O mote de que “você pode ser o seu próprio banco” também não convence, uma vez que não há dados de uso expressivo de criptoativos para fins de pagamento e que a dificuldade em manter carteiras auto-custodiadas acaba direcionando os investidores para manter seus recursos em exchanges ou em serviços de custódia delegada.
Quando analisamos os vinte criptoativos de maior volume negociado, de acordo com a plataforma CoinMarketCap (representando mais de 80% do volume negociado no mundo e valor capitalização de mercado), percebemos que são (a) tokens de infraestrutura nativa cripto, isto é, dedicados à manutenção de uma rede/protocolo para transações, (b) stablecoins, que oferecem retornos pareados a ativos com cotações mais previsíveis (especialmente dólar) ou (c) meme coins (Doge Coin e Shiba Inu).
Na primeira categoria, encontramos os ledgers mais famosos (Bitcoin e Ethereum), redes alternativas (Solana, Cardano, Tron, PolkaDot), ramificações do passado (LiteCoin, BitCoin Cash) e tokens associados às plataformas de finanças descentralizadas (Dai, PolkaDot) ou de utilidade associada a serviços de criptoativos de um modo mais genérico (Chainlink, Polygon, Wrapped Bitcoin).
O protagonismo das stablecoins sugere que esses criptoativos são utilizados de forma relevante como reserva de valor para quem mantêm seus recursos fora do sistema financeiro tradicional e, ainda, é compatível com sua proeminência em plataformas DeFi. Uma hipótese a ser testada em pesquisas empíricas no futuro é a de que as pessoas jurídicas no Brasil podem estar realizando transações com criptoativos não para especular com seus recursos, mas para gerir reservas em dólar, realizar transferências em moeda estrangeira ou, ainda, para fins de planejamento tributário. O protagonismo desses tokens no mercado mundial e no Brasil nos leva à segunda pergunta enunciada anteriormente, a respeito das vantagens das operações de tokenização. Afinal, o maior volume e atenção se voltam a criptoativos mais distantes desse tipo de operação, que consiste na “ação de criar representações digitais de direitos de um ativo preexistente ou de emitir ativos nativamente digitais”, nos termos do estudo “Tokenização de Títulos e Valores Mobiliários”, publicado pela Anbima em julho de 2022.
Em essência, a tokenização se vale do armazenamento de informações em um registro compartilhado em uma rede, prescindindo de uma entidade central para garantia de sua integridade que pode receber novas transações, mas cujo histórico não pode ser alterado. Em teoria, esse arranjo pode trazer benefícios operacionais quando comparado aos sistemas tradicionalmente utilizados por infraestruturas de mercado, tais como escrituradores, custodiantes e depositários.
À primeira vista, não há um benefício direto para um investidor que adquire, por exemplo, tokens associados a títulos de renda fixa ou a recebíveis. No limite, a vantagem para quem compra esse token é a oferta de um investimento alternativo com retornos potencialmente mais atrativos.
Por outro lado, os benefícios operacionais de redução da complexidade custos de infraestrutura de mercado têm sido o foco dos projetos aprovados nos sandboxes regulatórios da CVM e do Banco Central – neste último caso, explorando-se as vantagens de liquidação de operações com o Drex (real digital). SMU (Estar), QR Vortx tokenizadora e BEE4 têm apostado na possibilidade de criar mercados alternativos à bolsa (mais precisamente, mercados de balcão organizado) para a emissão e negociação de títulos de empresas de menor porte.
Nesse contexto, notamos certa disparidade entre, de um lado, os holofotes na negociação de criptoativos que não têm relação direta com operações de tokenização e ainda refletem, em grande medida, um mercado global, volátil e pouco regulado e, de outro lado, um promissor, mas ainda incipiente, mercado de tokenização, que pode ser uma inovação financeira genuína.
A atenção das instituições financeiras tradicionais, do Banco Central e da CVM parece se voltar às operações de tokenização, um paradigma que, pelo menos por ora, ainda precisa ser validado. Contudo, o maior risco para os investidores ainda se encontra no amplo acesso – e de difícil restrição –a criptoativos cujo valor decorre exclusivamente das negociações em ambientes dispersos, opacos e sujeitos a manipulações e outras fraudes e cuja dificuldade de fiscalização pode favorecer evasão de divisas, sonegação fiscal e lavagem de dinheiro (a despeito da rastreabilidade das transações).
Para mitigar esses riscos, além do inafastável desafio de promover a educação financeira, merece destaque a iniciativa da ABCripto no sentido de assegurar que seus associados apliquem as melhores práticas definidas em um código de autorregulação. Penso que, nas normas a serem propostas pelo Banco Central, seria ideal contar com mecanismos para fomentar as operações de tokenização e explorar suas vantagens, mas, ao mesmo tempo, aumentar os custos (e dificuldade) de se negociar ativos virtuais que tragam riscos relevantes aos investidores e à integridade do sistema financeiro nacional.
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*Isac Costa é sócio de Warde Advogados, professor do Ibmec, do Insper e da LegalBlocks. Doutor (USP), mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde também atuou como assessor do Colegiado.
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