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SEC versus Binance: quem é Geni e quem é Zepelim

Nos últimos meses, a atuação da Securities and Exchange Commision (SEC), regulador do mercado de capitais norte-americano, tem se intensificado contra as exchanges de criptoativos. Na segunda-feira, 5/6, foi divulgada ação contra a Binance e, no dia seguinte, uma ação contra a Coinbase. São acusações diversas, que detalharei a seguir, em um contexto que, para alguns, é uma “caça às bruxas” destinada a sufocar a inovação e, para outros, um esforço para estancar um frenesi especulativo em torno de uma inovação de benefícios questionáveis e riscos elevados à poupança popular. Mais do que perguntar se a atuação da SEC é algo bom ou ruim, convém questionar: bom para quem, ruim para quem? Antes de seguirmos, porém, para uma melhor experiência, recomendo que você leia esse texto ao som da música “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque.

As discussões sobre o modelo de atuação da Binance e a regulação da criptoeconomia costumam ser acaloradas. Um amigo querido costuma se referir à exchange capitaneada por Changpeng Zhao (CZ) como “Geni”, de tantas ofensas e pedras que lhe são jogadas rotineiramente, em alusão à protagonista da canção mencionada acima. De um lado, acusações de lavagem de dinheiro, controles internos falhos, dossiês elaborados por agências de notícias e críticas públicas de autoridades. Contudo, para outros, a empresa representa uma síntese de vários princípios do mundo cripto: a resistência à censura e intervenção estatal, a liberdade econômica, a desnecessidade de uma sede nos moldes tradicionais e uma resiliência diante de ataques.

Nessa perspectiva, a SEC aparece como vilã, um “zepelim flutuante” com seus canhões, cujo comandante pode mudar de ideia e evitar que “a cidade vire geleia”, se a formosa dama lhe servir, aceitando que sua atividade deve se sujeitar à regulação, por ser um genuíno mercado de bolsa e vários dos tokens listados serem valores mobiliários. Caprichosa, em seu discurso público, a Geni parece preferir a anarquia”, alegando que a SEC está extrapolando a sua competência legal.

Penso que, enquanto a história está sendo escrita, é difícil dizer quem é herói e quem é vilão, especialmente no faroeste cripto. Daqui a alguns anos, se a criptoeconomia se revelar mera “criptomania”, mais uma atração no museu de bolhas financeiras, a narrativa pode ser muito diferente: a alegoria acima pode ser reescrita tendo a SEC como Geni, tendo que fazer o “serviço sujo”, e a Binance como Zepelim, uma ameaça à poupança popular.

Ao analisarmos a acusação da SEC contra a Binance, encontramos não apenas uma teimosia do regulador em exigir o registro prévio e, com isso, o pagamento de taxas e a visibilidade das operações para fins de arrecadação de tributos, objeções comumente encontradas – o governo desejaria regular não para proteger ninguém, mas para morder uma parcela das receitas e, eventualmente, favorecer instituições financeiras tradicionais impondo barreiras regulatórias. Não é preciso refutar essas objeções para que lembremos da razão de ser da regulação: na ausência dela, certos riscos são potencializados.

Ainda que a regulação não tenha sido capaz de evitar escândalos diversos (vide OGX, Americanas e outros), é difícil fazer prova do que ocorreria em nosso mercado se ela não existisse. No mundo cripto, porém, é possível evidenciar os danos causados pela inexistência de regras mínimas: a promiscuidade patrimonial que levou à quebra da FTX, os níveis excessivos de alavancagem de outras empresas que quebraram durante o inverno cripto de 2022, os ataques cibernéticos dos quais não se tem certeza se são mera apropriação indevida de recursos de clientes, dentre outros problemas que só maculam a reputação do setor.

Se, no processo da SEC contra a Coinbase, a tese central é a ausência de registro, encontramos, por sua vez alegações muito mais sérias na acusação da SEC contra a Binance. A falta de transparência na realização de operações teria facilitado a prática de manipulação de preços, o registro de operações simuladas (“wash trades”), negociação com carteira própria em conflito de interesses com relação a clientes e a facilitação de lavagem de dinheiro, não implementando, de fato, os controles internos e rotinas de monitoramento de infrações declarados pela empresa. Se não há como confirmar as cotações e volumes financeiros em uma exchange, seja ela qual for, sua credibilidade está em xeque.

Desse modo, de acordo com a SEC, enquanto muitos acreditam que o protagonismo da Binance decorre de um modelo de negócios sólido e investimentos em tecnologia e experiência de usuário, com isso, atraindo liquidez e auferindo economias de escala, essa mesma escala decorreria de práticas destinadas a induzir investidores em erro, sobretudo com relação ao movimento dos preços (alegado como artificial em diversas situações pela SEC) e ao custo efetivo das operações (considerando custos invisíveis impostos aos clientes em razão de práticas não equitativas). Em suma, um genuíno Zepelim, ameaçando o mercado.

Para os entusiastas da liberdade na criptoeconomia, tal proteção estatal seria inconveniente ou até mesmo desnecessária. A despeito desse argumento, em um Estado Democrático de Direito, as leis vigentes impõem a tutela do investidor-consumidor, quer nos Estados Unidos, quer no Brasil. Discordar da lei não nos autoriza a descumpri-la (embora a validade dnessa afirmação seja uma das discussões centrais da teoria geral do direito, que foge ao escopo do presente texto).

Se as alegações da SEC forem provadas como verdadeiras, então não haverá dúvida sobre os danos causados à economia popular norte-americana (e a de outros países nos quais a Binance atua). Retratada como vilã, a SEC, como a maior parte dos reguladores em crises financeiras, virá estancar a sangria e testemunharemos mais um ciclo de clamor por regulação, como ocorreu após 2008. Mas a memória do mercado é curta, como a dos habitantes da cidade de Geni: em pouco tempo, a regulação voltará a ser inimiga, alvo de “pedradas e cuspidas” por sufocar a inovação e o crescimento econômico, iniciando-se um ciclo de clamor por flexibilização. E essa flexibilidade levará a novos abusos e o mercado seguirá com sua neurose e manias habituais.

Em qualquer caso, ainda é cedo para tentar prever o desfecho dessa história. Se a Binance provar sua inocência, será um caso paradigmático de abuso regulatório, que talvez demande a intervenção do Congresso norte-americano para ser resolvido.

O mercado de capitais não é um conto, uma novela, uma canção, de heróis e vilões, não existem gurus, apenas falsos profetas. E monstros, prontos para predar o seu patrimônio, considerando que a sociopatia e a psicopatia são diferenciais para prosperar no mundo das finanças. Esses monstros adularão você quando desejaram seu patrimônio e, após conseguirem o que querem, te tratarão como Geni. Tenha isso em mente.

Por ora, para quem está com pedras nas mãos, seja para jogar na Binance ou na SEC, deixo aqui uma sugestão: priorize o seu patrimônio e busque o máximo de informações sobre como o seu dinheiro é gerido, como é implementada a propriedade de seus títulos (digitais ou tradicionais) e adapte seus investimentos aos riscos que você efetivamente pode incorrer. A prioridade número um deve ser o seu bolso.

*Isac Costa é sócio de Warde Advogados e professor do Ibmec e do Insper. Doutor (USP), mestre
(FGV) e bacharel (USP) em Direito e Engenheiro de Computação (ITA). Ex-Analista da CVM, onde
também atuou como assessor do Colegiado.

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